#85 Nuno Serra

Nome: Nuno Serra
Naturalidade: Arrifana (Guarda)
Idade: 54
Formação académica: Mestrado em Geografia
Ocupação Profissional: Técnico Especialista no Gabinete do Ministro da Educação (XXIII Governo Constitucional)
Outros: Técnico Superior Principal na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

1- Quem é a/o Geógrafo/a? Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
Para quem, como eu, ingressou no curso de Geografia no final dos anos oitenta, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – ou seja, num tempo em que a trajetória esperada era a da docência no ensino básico e secundário – e revendo o meu percurso desde então, talvez se possa dizer que sou um geógrafo errático… De facto, apenas lecionei aulas de Geografia nos primeiros anos depois da licenciatura. No ensino básico durante o estágio pedagógico, que não cheguei a concluir, e depois em regime pós-laboral, no ensino secundário, à noite, também em Coimbra. Anos mais tarde, e já sem relação direta com o ensino da Geografia, lecionaria ainda num curso profissional de turismo e em licenciaturas de formação de professores do 1º e 2º ciclo, no Instituto Jean Piaget, em Viseu.
A trajetória esperada, por assim dizer, foi interrompida com o ingresso no Mestrado em Geografia, em 1991, também na Faculdade de Letras de Coimbra. Tratou-se de uma decisão difícil, pois de alguma forma estava a trocar o futuro estável de pertencer ao quadro de uma escola no curto-prazo – num tempo em que havia ainda uma falta significativa de professores de Geografia – por algo mais incerto. Isto é, por um futuro que se perspetivava imprevisível, decorrente da opção pela realização do mestrado.
Neste dilema que então se colocou, foi decisivo o apoio de António Gama Mendes, meu querido amigo e saudoso professor e mestre na licenciatura, que me incentivou a ir por ali... E seria também através dele que comecei, entretanto, a trabalhar no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), inicialmente com outros dois grandes mestres e amigos, José Reis e Pedro Hespanha e, mais tarde, com investigadores das mais diversas áreas, entre os quais Maria Manuel Leitão Marques e Boaventura de Sousa Santos.
Há neste ponto um aspeto importante e que queria realçar. O CES era, naquele tempo (e continua a ser, na verdade), um dos poucos centros de investigação que assume em toda a plenitude o trabalho e o pensamento interdisciplinar. O que, para um geógrafo acabado de se formar, constituía um absoluto privilégio, ao permitir desenvolver, e nessa medida concretizar, uma formação que – pelo menos em teoria – já comportava essa dimensão, essa natureza interdisciplinar. Foi nesse ambiente, muito vivo e estimulante, e a partir de sólidos quadros interpretativos (como o da condição semiperiférica da sociedade portuguesa, por exemplo), que acompanhei projetos nas áreas da proteção social, sistemas produtivos locais, administração da justiça, ambiente, Estado Social, políticas públicas, etc.
Acresce, e não é menos importante do ponto de vista da formação dos «modos de ver» e de pensar, que o CES se distinguia igualmente (e continua a distinguir-se), por um pensamento crítico e de compromisso com a mudança social. O que se traduzia, na prática, na valorização dos quadros epistemológicos e dos contextos para pensar, entre outras, as questões do desenvolvimento e das desigualdades… Na importância do conhecimento crítico para uma justa transformação do mundo, em linha com a melhor tradição da Geografia Crítica e marxista, onde sobressai, por exemplo, David Harvey.
Tendo, entretanto, terminado o mestrado, dedicado às questões do Estado e do território, na perspetiva das políticas de habitação em Portugal, viria para Lisboa no final da década de noventa, desta vez a convite de José Reis, de quem fui assessor na Secretaria de Estado do Ensino Superior. Passei depois pelo PRODEP, que geria nessa altura os fundos comunitários para a educação, e ingressei, em 2004, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, onde comecei por coordenar um projeto de Desenvolvimento Comunitário, na freguesia da Ameixoeira.
Desde 2015 – e depois de, uns anos antes, ter assumido as funções de assessor da deputada Ana Drago, no Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda – tenho estado envolvido em gabinetes governamentais. Inicialmente, e no quadro da solução política de convergência à esquerda, com Mariana Vieira da Silva (então Secretária de Estado-Adjunta do Primeiro-Ministro) e depois no Ministério das Infraestruturas e da Habitação, com Pedro Nuno Santos, acompanhando nomeadamente as matérias relacionadas com a política de habitação. Atualmente, desempenho funções no Gabinete do Ministro da Educação, João Costa.
Descrito este percurso errático, face ao que seria a perspetiva inicial, regresso à pergunta colocada: «de que forma a Geografia faz parte da sua vida?». E a resposta mais imediata é talvez a de que nunca deixou de estar presente, em todas as experiências profissionais, e mesmo que, à partida, tal não pareça evidente.
Este é outro ponto importante e que queria também assinalar. Creio que a formação inicial de Geografia, sendo por natureza abrangente e interdisciplinar – e por isso de certa forma superficial, por congregar conhecimentos de domínios muito diversos (da demografia ao espaço construído, das cidades aos espaços rurais e industriais e da inscrição no território dos processos económicos e sociais, para já nem sequer falar de matérias da Geografia Física) – permite desenvolver uma capacidade de análise que se revela bastante maleável a diferentes contextos profissionais.
De certa forma, creio que se pode dizer que um geógrafo não é propriamente especialista em coisa alguma… Não é isso que, no essencial, o distingue. Mas antes – e isso, sim, talvez seja mais específico da nossa área e das nossas competências – a capacidade de equacionar relações e articulações entre vários elementos, enquadramentos e contextos. Um «modo de ver» que, por essa razão, torna os geógrafos de algum modo preparados, à partida, para trabalhar em domínios e com questões muito distintas.

2- Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Perante esta trajetória, marcada por diversos inesperados, não tenho propriamente planos definidos. Tanto quanto posso antever, regressarei a seu tempo à Santa Casa da Misericórdia, o meu lugar de origem, e pretendo concluir o doutoramento, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que iniciei no âmbito do Programa Governação, Conhecimento e Inovação. Trata-se, neste sentido, de um certo prolongamento e atualização da tese de mestrado («Estado, Território e Estratégias de Habitação», publicada pela Quarteto em 2002), procurando essencialmente analisar a transição de um paradigma assente na «aquisição da casa própria», que marcou sobretudo a década de noventa, para um novo paradigma, que emergiu na sequência da crise de 2007/08. Isto é, da descoberta da habitação enquanto «ativo financeiro», num contexto de crescente internacionalização dos investimentos imobiliários e de intensificação do turismo, com impactos relevantes nos sistemas de habitação nacionais.

3- Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
Talvez as seguintes: territórios, inter-relações, trajetórias.

4- Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Pensando em geógrafos, sugiro talvez um livro recente, coordenado por Ana Drago, no âmbito dos estudos que o Observatório sobre Crises e Alternativas (CES Lisboa) tem vindo a desenvolver. Chama-se «A Segunda Crise de Lisboa – Uma metrópole fragilizada» (Actual Editora, 2022). Recomendo-o vivamente, desde logo, por se tratar de um trabalho que reúne investigadores de diversas áreas (sociólogos, economistas, geógrafos e arquitetos), mas sem que a obra resulte numa simples ordenação cumulativa de gavetas estanques, antes comunicando estas entre si e partilhando linguagens e quadros de leitura comuns, num todo que, desta forma, adquire consistência e clareza. Em segundo lugar, porque é um trabalho muito interessante sobre o acumular de crises num dado território e do modo como essa acumulação de crises resulta, simultaneamente, de escolhas políticas e de vulnerabilidades, de modelos de desenvolvimento limitados e persistentes e os seus impactos, muitas vezes negativos, nas diversas esferas da vida política, económica, social e cultural.

5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
Correndo o risco de me repetir, creio que é a capacidade que a formação inicial desenvolve em nós, geógrafos, de enquadrar, de relacionar, de levar em linha de conta fatores diversos na sua natureza e significado… E de algum modo os ligar, os articular. De forma mais específica, é importante a introdução da questão do território nas análises e desenvolvimentos das mais variadas questões. Na melhor compreensão, para dar um exemplo, dos processos de abandono escolar ou do sucesso educativo, que obrigam a considerar a importância dos contextos, dos quotidianos, das condições de vida, dos tecidos sociais em que se movem os alunos e as suas famílias.

6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Na maior parte dos casos esse reconhecimento, quando acontece, não é imediato. Aliás, e muito em virtude da minha passagem pelo CES, os colegas intuem por diversas vezes que sou formado em Sociologia. Noutros casos – e aqui talvez por ser coautor de um blogue de economia política, o Ladrões de Bicicletas – perguntam-me se sou economista… Se pensarmos bem, a Geografia tende a ser uma presença tendencialmente mais discreta e «silenciosa»», que se integra por vocação em contextos de trabalho pluridisciplinar. Isto é, caso não se conheça de antemão, não se constata de imediato que alguém é geógrafo (ao contrário do que sucede, por exemplo, com um jurista, um matemático, ou um certo tipo de economista, etc.). E isto tem muito a ver, parece-me, com o que referia no início: nós não somos propriamente especialistas… A nossa especialidade é mesmo, talvez, o generalismo. Não no sentido da superficialidade, antes no sentido da capacidade de relacionar, de contextualizar, de mobilizar elementos diversos e de procurar articulá-los com significado.

7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
Correndo novamente o risco de me repetir, talvez dissesse a um jovem que está perante uma formação em «banda larga». Isto é, que lhe permite contactar com diversas áreas e que lhe pode proporcionar experiências profissionais e oportunidades de trabalho mais diversas do que, à partida, se poderia supor. Tanto mais quanto – e esse é, ou deve ser, outro dos traços da Geografia – souber desenvolver a capacidade de combinar métodos de análise qualitativa e quantitativa para relacionar, articular e contextualizar. A capacidade de adaptação a diferentes funções e domínios parece-me ser, de facto, algo que o ensino da Geografia permite, pelas matérias disciplinares que necessariamente congrega, mas também porque – ao congregá-las – obriga, de certo modo, ao estabelecimento de relações.
A um geógrafo «no ativo», por assim dizer, sublinharia a questão das responsabilidades que a sua formação, o pensamento de síntese que parte da diversidade – acarreta. Não dispensando o espírito crítico e de compromisso com os contributos que o olhar da Geografia pode dar, na perspetiva da construção de um mundo mais justo e sustentável… Não se trata apenas da sustentabilidade ambiental e da questão das alterações climáticas, em que a Geografia – pela capacidade de análise das relações entre o homem e a natureza – está particularmente vocacionada. É também a questão da sustentabilidade social e económica, que tem uma inscrição espacial, expressa em equilíbrios e desequilíbrios, e que convoca, entre outras, as questões do ordenamento do território e da governação.

8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
A crise de habitação que hoje atravessa não apenas o nosso país, mas também a generalidade dos países europeus (e não só). Ela reflete um conjunto de circunstâncias e de processos que suscitam, de vários pontos de vista, o interesse da Geografia. Trata-se de uma crise que decorre essencialmente das novas formas de procura, cuja natureza é em muitos casos especulativa e indissociável dos processos de financeirização da economia. E que revela o entrecruzar de diferentes escalas, dada a relevância que hoje assumem fenómenos como o do turismo e da internacionalização dos investimentos imobiliários, que encaram muitas vezes a habitação como um mero «ativo financeiro» e não pela sua função residencial. Processos cujo enquadramento político e institucional ultrapassa, portanto, a escala do Estados Nação, e cujo impacto é marcada e tangivelmente local, nas transformações que operam nos territórios e contextos locais. São dinâmicas que afetam particularmente as cidades, os espaços urbanos (sobretudo os de maiores dimensões), gerando mudanças (como a gentrificação) e disrupções por vezes profundas (expulsão de moradores do centro para as periferias, intensificação das mobilidades casa-trabalho, novas formas de economia urbana, etc.). Ou seja, que convocam a capacidade interpretativa de um geógrafo, cujo olhar pode contribuir para que se resolvam.

9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
Dou um exemplo talvez surpreendente, desde logo para mim próprio… Apesar de a minha formação ter enveredado progressivamente para a Geografia Humana, guardo uma excelente memória de uma visita de estudo ao Maciço Calcário Estremenho, no âmbito da disciplina de Geomorfologia, com o professor Lúcio Cunha. Por um lado, por cumprir, de modo significativo, o que se espera de uma visita de estudo… Isto é, a constatação das coisas, no seu concreto, abordadas na sala de aula, com tudo o que de estimulante tem essa constatação. Por outro lado, pela diversidade das formações geomorfológicas que ali encontramos, que traduzem a própria riqueza do relevo cársico, e pelas «viagens», no tempo geológico e até climático, que essas formações permitem fazer… Por último, porque se trata de um espaço natural que, nas suas originalidades e manifestações, nos interpela de modo particular sobre a relação entre o que é físico, natural, e o que é humano, nos processos de ocupação do território.