#79 Carlos Manuel Cruz
Nome: Carlos Moreira Cruz
Naturalidade: Por feliz acaso Lisboa mas Almadense.
Idade: 57
Formação académica: Licenciatura em Geografia (Variante de Planeamento Regional e Local) pela Faculdade de Letras de Lisboa e Doutoramento em Engenharia do Território pelo Instituto Superior Técnico.
Ocupação Profissional: Docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal
1- Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
Como docente trabalho sobretudo na área da Didática da Geografia, do Ambiente e da Sustentabilidade. Tive uma breve passagem pelo Planeamento Regional que foi muito enriquecedora bem como pela política local. A Geografia é vivida dia a dia porque somos em grande parte o que pensamos.
2- Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Os projetos imediatos estão relacionados com a Didática da Geografia em temas nos quais há pouca produção científica em Portugal. Daí a sua relevância. Como estou desde há 30 anos muito envolvido com a formação de professores em vários projetos em Angola e, neste momento, na Guiné-Bissau, quero sistematizar alguma da intervenção nesta área em colaboração com o nosso colega e meu amigo Sérgio Claudino. Redescobri recentemente a área da alfabetização cartográfica que é, na prática, o ensino da cartografia para crianças, e vou apresentar brevemente alguns dos resultados desse trabalho. É uma área muito desenvolvida no Brasil mas não em Portugal. E as dificuldades dos alunos do ensino superior na leitura de mapas “contende-me com os nervos”…
3- Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
Estou ciente das dificuldades da definição em tão poucas palavras, mas ainda assim não é um inefável. Diria, com base na minha experiência como docente numa casa de formação de professores: território, afeto e intervenção cívica! Orlando Ribeiro que nos influenciou a todos falava na “amorosa compreensão da terra e das gentes”. É impossível, e digo-o muito convictamente, compreender sem sofrer, ainda que “à distância”, como diria T. S. Eliot, as dores da imensa massa humana que molda as paisagens. É a herança humanista de Humboldt e de tantos outros, de entre os quais destaco também David Harvey pelos seus contributos contemporâneos. E que nos impele à ação.
4 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
O livro que mais me marcou e mudou, de longe, foi “A Cidade através da História” de Lewis Mumford. Um livro feito por um homem maduro, (teria então cerca de 66 anos), que se iniciou como crítico do skyline de Nova Iorque e evoluiu no sentido da compreensão da evolução das sociedades e das suas relações com as regiões e os espaços que polarizam. Pensador fecundo do planeamento regional e urbano a análise geográfica é omnipresente na sua obra. Foi como ler uma história da humanidade contada a partir das relações sociais, (os conteúdos), e suas manifestações materiais, entre as quais as cidades (os continentes). Mudou a minha visão do mundo e das civilizações. Afinal quase tudo o que tinha aprendido sobre a história mundial estava pura e simplesmente errado! Mumford não hesita em avaliar do ponto de vista daquilo a que chamaríamos hoje a sustentabilidade, as formas urbanas, as regiões, as civilizações, as relações com o ambiente, as relações sociais e políticas… E poucas “ficam bem na fotografia”. Recomendo como leitura de férias ou de tempos livres pois, como tantos outros clássicos, tem que ser bem degustado. Além disso a sua dimensão, erudição e impressionante detalhe, impede que sejam lidos de outra forma.
5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia a dia, ser geógrafo?
A Geografia é uma espécie de segunda pele. É uma maneira de pensar e de atuar e por isso significa muito no dia a dia. Os raciocínios que estabelecemos e que interrelacionam fenómenos a diferentes escalas e períodos temporais é absolutamente original. E isso tem significado no nosso círculo de relações… E também, pelo menos no meu caso, na cidadania territorial. Uma vez, na faculdade, perguntaram-me de onde era. Disse que era de Lisboa logo não tinha terra. Dos meus vinte anos até hoje mudei muito. Tornei-me um cidadão ativo em Almada e na sociedade. Já o era em parte mas tornou-se uma necessidade. Até que ponto a Geografia contribuiu para tal?
6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
É reconhecida sem dúvida. Normalmente sou solicitado para trabalhos na área ambiental onde os geógrafos reconhecidamente constituíram, de alguma forma, uma vanguarda. Os colegas reconhecem nos geógrafos a capacidade de compreender as relações entre a natureza e a sociedade. Além disso em tudo aquilo que tenha que ver com o ordenamento do território e o conhecimento das regiões. Embora de uma forma mais difusa posso também dizer que, em geral, é reconhecida a nossa capacidade de ter uma visão integrada e abrangente.
7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades? Sobre o futuro?
Com a minha idade já não tenho muitas certezas. Mas sempre diria que o principal será ter iniciativa: fazer coisas! Até porque a evolução da ciência, da tecnologia e da sociedade evidencia cada vez mais a importância da Geografia e da sua originalidade. Fazemos muita falta! E não se preocuparem muito com o sucesso ou insucesso. Recupero a célebre e deliciosa frase atribuída a um grande Mestre: “vale mais ter mau hálito que não ter hálito nenhum”.
8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
A atual guerra da Ucrânia demonstra claramente a importância daquilo a que Yves Lacoste chamou a espacialidade diferencial que constitui a essência do que fazemos: olhar para os fenómenos a várias escalas e em diferentes períodos históricos.
Porque não é só uma guerra moderna. O passado está lá, os impérios e a sua dissolução, os sistemas políticos, as alianças, mas também a fome, a dor, a morte, a coragem e a cobardia - que devia ser um direito -, o futuro e o medo do futuro. E os espaços planos ideais para o avanço dos exércitos, a profundidade do território, os cereais e as suas redes… E o Bósforo e os Dardanelos. Já Talleyrand dizia que as democracias, isto é, o fim inevitável dos impérios, ia provocar muitas guerras.
É pavoroso sobretudo ver, como diria Mumford, como a Cidadela, com todo o seu aparelho militar, mental e social, continua a mandar na Cidade. Não devia ser assim: mas é!!
9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
Vou puxar a brasa à minha formação urbanita e vou referir Lisboa, muito particularmente a Baixa e o Centro Histórico. E porquê? Porque tem camadas sobre camadas de história, de interrelações e dinamismos a várias escalas com territórios diferentes e com o ambiente natural. E temos fabulosos exemplos dessas relações desde os primeiros assentamentos humanos cuja localização nas colinas se fez para evitar as doenças, até à localização do Convento do Carmo numa lógica de afrontamento de Nuno Álvares Pereira ao Rei D. João I que via, - mal-humorado -, construir este gigante a partir do Castelo de São Jorge. Ou até à fuga da família real para o eixo Belém-Ajuda depois do sismo de 1755, donde resultou aliás uma cidade sem Rei, a não ser em estátua. Ou à gentrificação tão estudada pelo nosso incansável Luís Mendes entre outros ilustres geógrafos. E também aos cheiros das pastelarias e restaurantes e das pessoas e aos sons e à Ginginha no Largo de São Domingos.