#75 Jordi Nofre

Nome: Jordi Nofre
Naturalidade: Catalunha (Espanha)
Idade: 43
Formação académica: Doutorado em Geografia, Universidade de Barcelos (2009)
Ocupação Profissional: Investigador principal FCT
Outros: Coordenador do LXNIGHTS RESEARCH GROUP, E CO-FUNDADOR DA INTERNATIONAL NIGHT STUDIES NETWORK.

1- Quem é o Geógrafo? Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
Nasci em Barcelona, embora cresci num bairro popular de L’Hospitalet de Llobregat, uma cidade suburbana de Barcelona. Na altura da minha adolescência, os putos do bairro íamos jogar a bola nuns terrenos agrícolas abandonados nos quais hoje dúzias de milhares dançam música eletrónica no festival Sónar Barcelona. O meu doutoramento foi sobre a segregação sócio-espacial do lazer noturno na capital catalã e nos seus subúrbios, encontrando como resultado a aplicação de uma agenda oculta de colonização cultural e homogeneização social nos subúrbios de classe operária por parte das elites político-culturais da capital catalã e do governo regional. Depois do meu doutoramento em Barcelona, cheguei a Lisboa em 2010, com o meu melhor amigo (Prof. Doutor Marc Oliva, naquela altura também bolseiro postdoc no IGOT e atualmente professor no Departamento de Geografia da Universidade de Barcelona). Lembro-me que aquele Janeiro-Fevereiro de 2010 foi um inverno extremadamente chuvoso e frio. E mesmo assim, as noites do Bairro Alto eram o “Vietnã”: aquilo merecia um estudo aprofundado dos múltiplos e complexos processos, visíveis e não tão visíveis, que configuravam a noite do Bairro Alto. E foi assim como comecei a investigar sobre a interação entre a economia da vida noturna, o turismo urbano, e as transformações urbanas, nomeadamente em dois bairros históricos lisboetas: Bairro Alto e Cais do Sodré. Neste sentido, se calhar soa um bocado freak, mas talvez pelo objeto do estudo, e também por questões pessoais e emocionais, o meu trabalho faz parte de mim, é uma forma de vida, o que implica também uma forma de ser, de ver e compreender o mundo, de me relacionar com as pessoas, e de pensar criticamente o passado, o presente, e o futuro. 

2- Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Nesta altura estou a liderar uma proposta de COST Action, “Next Generation Nights in Europe”, a qual propõe uma investigação inovadora e a implementação de um processo de reflexão sobre como a indústria nocturna europeia deve ser no futuro, e, crucialmente, que papel deve ter na promoção e realização dos objectivos definidos pela New Bauhaus Initiative. Neste sentido, esta proposta de COST Action é resultado de um intenso trabalho de networking e “win-win” entre diferentes parcieros académicos e não académicos de Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Estonia, Finlándia, Hungria (entre outros países) que tenho vido a realizar ao longo dos últimos cinco anos. Por outra parte, e além do grupo de investigação sobre a noite urbana que estou a coordinar (LXNIGTHS), um dos resultados deste trabalho feito ao longo dos últimos anos tem sido a criação da International Night Studies Network, coordenada atualmente pelo Manuel García-Ruiz (ISCTE). També com o Manuel temos proposto à Springer Nature a criação da revista International Journal of Night Studies. De facto a proposta de criação desta revista tem a ver com o crescimento da International Conference on Night Studies que organizamos anualmente e que este ano será em formato híbrido, o que permitirá desenvolver a conferência não só presencialmente no Colégio Almada Negreiros da FCSH, mas também em alguns locais do Bairro Alto e do Cais do Sodré, como mostra de apoio e solidariedade com o setor depois de dois anos de ‘pandemic politics’ e do discurso moralista-higienizador, criminalizador, repressivo e punitivista que caracterizou a governança da noite em tempos de pandemia.  Por outra parte, a proposta Next Generation Nights tem uma “versão portuguesa” que foi submetida no concurso de projetos em I&D deste ano. Vamos ver se as bolas do bingo continuam a ser marcadas ou não. Resumindo, todo o trabalho feito desde o LXNIGHTS e a International Night Studies Network visa sublinhar a importância e necessidade de “pensar a cidade noturna” para um futuro urbano mais inclusivo, igualitário, livre de violència, sustentável e emancipador. 

3- Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
Caramba, alguém já consiguiu? Hehehe...Uhmm eu diria: Paixão, compromisso, amor pelo povo e pela terra.

4 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Um livro que me marcou imensamente, e recomendo vivamente, é Road to Wigan Pier (1938), de George Orwell. Para mim, Orwell retoma o caminho iniciado pelo Friedrich Engels e a sua “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, e faz uma descrição extraordinária, detalhada e profunda sobre as condições de pobreza, das péssimas condições habitacionais, e da absoluta exploração laboral da classe operária, neste caso numa aldeia mineira do norte da Inglaterra. Na minha humilde opinião, Road to Wigan Pier é uma das obras fundamentais (e, paradoxalmente, não académicas) que mostram com absoluta clareza o processo de construção do pensamento crítico em geografia humana: capacidade de observação (até os detalhes mais sutis), curiosidade, empatia, habilidade analítica, raciocínio estruturado, etc. 

5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
Ao nível pessoal, ser geógrafo faz parte de uma escolha de forma de vida, e tem o seu lado positivo e o seu lado negativo; é como tudo na vida. Em termos profissionais, o meu trabalho tem tido um bom reconhecimento por parte das/dos colegas de profissão. No entanto, posso confirmar nestas linhas existência de um “desprezo” (embora, francamente, estou-me nas tintas) por parte da CML, e por parte também dos representantes nacionais da indústria do lazer noturno – com a exepçaão de duas pessoas cinco estrelas: Gonçalo Riscado, do Music Box; e Daniel Pires, da Associação Saco Azul.
No dia-a-dia, ser geógrafo permite ter uma visão multiescalar e multidimensional daquilo que é observado: é uma das grandes diferenças com a antropologia ou a sociologia. Neste sentido, o meu trabalho navega entre duas subdisciplinas, nomeadamente a geografia social e a geografia urbana. O facto de estar desde Janeiro de 2010 a realizar trabalho de campo quase todos os dias (com a exepção destes dois anos de pandemia, e agora por causa da minha paternidade de gêmeas), tem-me permitido construir uma espécie de “matriz tridimensional” das histórias de vida de alguns dos informantes com quem tenho estado a conversar ao longo de sete anos, o que, ao mesmo tempo, tem-me permitido construir uma “história urbana do presente” do Bairro Alto e do Cais do Sodré. 
Ser geógrafo implica também um olhar diferente no dia-a-dia ao transitar pelas ruas, ao falar com as pessoas. Neste sentido, ser geógrafo significa também uma visão diferente, muitas vezes crítica, dos diferentes processos que moldam a nossa vida quotidiana. Neste sentido, a geografia urbana e a geografia social permitem-nos "ler" melhor o forte impacto que as novas formas de capitalismo urbano têm nas diferentes comunidades locais das nossas cidades, especialmente no que diz respeito aos grupos mais vulneráveis. Por vezes, esta vida quotidiana do geógrafo torna-se uma militância combativa anti-capitalista, dependendo naturalmente do ponto de partida ideológico de cada um. 

6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
A geografia é, sem dúvida, um espaço de discussão e debate público que nos permite pensar e intervir no território sem sermos silenciados, ou mesmo sem sofrer a censura furiosa que, neste presente tão turbulento e escuro, permeia todo o espectro político de qualquer "democracia" europeia. O facto de ser uma ágora viva, activa e emancipatória para as comunidades mais vulneráveis significa que a Geografia é precisamente uma disciplina maltratada pelo Estado, que está ansioso por a extinguir. E isto, paradoxalmente, mostra um nível de hipocrisia e ignorância da parte dos nossos governantes que é certamente preocupante. Por um lado, o Plano Nacional de Ordenamento do Território é o instrumento mais básico e fundamental para a construção do futuro do povo português. Por outro lado, e como Ives Lacoste publicou em 1976, "La géographie ça sert d'abord à faire la guerre": sem geografia, os estados, os seus serviços de inteligência (civis, políticos, militares) não poderiam antecipar as suas acções numa altura como a actual do fim da hegemonia político-económico-cultural ocidental (e saúdo-a, embora preferiria que fosse sem guerras....). Mas apesar de tudo isto, e vejo-o sempre que falo com colegas de outras disciplinas académicas e sobretudo com os meios de comunicação social ou representantes do sector privado ou institucional, a geografia não existe além das fronteiras académicas. Por exemplo, ser sociólogo, economista, historiador, antropólogo é facilmente explicado nos meios de comunicação social, e "vende". Mas ser um "geógrafo" leva o telespectador a perguntar: "você é o quê?”

7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
Só quando terminar a sua licenciatura, e obviamente dependendo dos professores que tenha tido, a(o nova/o géografa/o pode afirmar sem qualquer dúvida que teve o privilégio de ter estudado uma licenciatura tão rica em conhecimentos, tão intelectualmente estimulante, e que não só lhe proporciona o conhecimento de ferramentas para compreender as diferentes situações quotidianas em que estamos inseridos, mas também nos permite reforçar a construção da nossa capacidade de construir uma visão. Bom isto é a parte "romântica" da resposta. É inegável que não existem hoje muitas oportunidades profissionais para os geógrafos em Portugal, e isto é culpa nossa (como colectivo organizado) porque não fomos capazes de explicar ao sector privado a importância do conhecimento geográfico na optimização, por exemplo, dos processos logísticos ou na antecipação de cenários instáveis para sectores muito específicos da economia, ou a importância da visão geográfica na concepção de estratégias de desenvolvimento regional e local e na criação de marcas turísticas singulares. A chamada transição ecológica urbana oferece um imenso potencial para a revalorização social da nossa disciplina, mas só o nosso profissionalismo e empenho, individual e colectivamente, nos permitirá colocar a Geografia como pilar na construção de um Portugal mais competitivo, resiliente, inclusivo e sustentável, sem que a imposição deste "capitalismo verde" conduza ao aparecimento de novas desigualdades e ao aprofundamento das antigas, que é o que vemos hoje, infelizmente.
Por outro lado, gostaria de me referir às oportunidades a nível de integração no Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. A FCT tem apostado definitivamente pela consolidaçao e reforço da precariedade em C&T, aumentando o número de bolsas de doutoramento (sem contrato de trabalho), e diminuindo o número de contratos enquadrados no programa Estímulo ao Emprego Científico. Isso significa que as oportunidades para ganhar uma bolsa de 1.000 euros mensais para 4 anos são maiores do que em tempos da troika (ora bém já estao a pedir artigos em Q1 como primeiro autor: é surreal…). Ora bém, não devemos mentir: temos que explicar que, com uma probabilidade de 90%, o futuro acadêmico depois da defesa da tese passa pela homenagem ao Willy Fog: sair do país e dar voltas pelo mundo ad eternum. Temos de ser francos com as nossas/os investigadoras/es mais novas/os, porque a aposta pela ciência tem custos pessois, emocionais, e de saúde mental muito elevados, até frequentemente negativos. De facto, não é uma situação exclusiva de Portugal, sino do sistema académico global, de profunda natureza capitalista, extractiva e exploradora. Ora bem, perante tal panorama deprimente, as e os colegas como eu que temos uma posiçao mais ou menos aceitável podemos criar estratégias alternativas, como por exemplo ajudar às/aos nossas/os investigadoras/es mais novas/os para escrever artigos para revistas ‘top’, podemos lhes promocionar em redes científicas internacionais, etc. Ou seja, esta estratégia alternativa passa pelo simples facto de criar um CV de nível extraordinário na altura de elas/eles terem feito a defesa da tese. Só desta forma podemos reduzir, embora seja só ligeiramente, a fuga ao extrangeiro de cientistas portugueses nos quais o Estado tem investigo milhões de euros do povo português e depois são as empresas privadas ou até outros países os que se beneficiam. As perspectivas a curto e médio prazo são desanimadoras, e dá vontade de aprender a destilar medronho...

8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
Um tema atual embora esteja silenciado na comunicaçao social é o futuro da indústria do lazer noturno no Portugal pós-pandemia. 
Segundo a Comissão Europeia, a saída para a crise económica derivada da COVID-19 surge como uma oportunidade única na vida de emergir mais forte da pandemia, transformar as nossas economias, criar oportunidades e empregos  e blablabla. Neste sentido, cada plano de recuperação apresentado pelos governos nacionais europeus como resposta à crise económica e social derivada da pandemia da COVID-19 deve abordar todos os desafios identificados no Semestre Europeu, e, particularmente, as recomendações específicas efetuadas pelo Semestre em 2019 e 2020, para uma transição verde e digital dos sistemas produtivos nacionais dos estados membros da União Europeia. No entanto, no Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal (2021), não há nenhuma referência à "vida nocturna" nem à "restauração" em todo o documento, enquanto que o termo "turismo" aparece apenas indirectamente no Programa Emprego + Digital 20215 - Formação em tecnologias digitais. Por sua vez, o termo “lazer” também só aparece indirectamente através da Estratégia Nacional para a Inclusão de Pessoas com Deficiência 2021-2025. Paradoxalmente, os termos “turismo”, “vida nocturna”, “alojamento”, “restauraçao” e cultura (actividades artísticas e recreativas) foram os mais referidos nos comentários sobre o processo de consulta pública do PRR. 
A hipocrisia dos responsáveis do PRR atinge níveis estratosfŕeicos quando o documento reconhece o impacto brutal da pandemia da COVID-19 nos sectores cultural e criativo e afirma que ambos os sectores são um pilar da economia da UE no futuro. No entanto, quando apresenta propostas de recuperação no campo da cultura, não há palavras sobre cultura criativa a não ser a promoção do património cultural nacional e a sua digitalização. De facto, a ausência do sector da vida nocturna no Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal é surpreendente, tendo em mente que a vida nocturna foi a principal razão para visitar Portugal para 18% dos turistas antes do surto da pandemia da COVID-19, segundo o atual Plano Estratégico para o Turismo na Região de Lisboa. Portanto, face ao reconhecimento pelo Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal do impacto brutal da pandemia da COVID-19 nos sectores cultural e criativo, poder-se-á perguntar que razão final levou o Governo português a invisibilizar a indústria nocturna nacional no  Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal 2021.

9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
A minha recomendação tem a ver com a minha investigação durante os últimos 12 anos. É a noite da Rua da Atalaia, no Bairro Alto. Pegue numa caneca e encoste-se à porta do Bar de Copacabana. É um fluxo constante de pessoas para cima e para baixo. Mas este fluxo, num cenário tão particular, oferece-nos muitas questões totalmente abertas, muitas reflexões, e muitas contradições. Por exemplo, as vozes e discursos da associação de moradores diferem muito das dos moradores desta parte da rua, que está absolutamente superlotada durante a noite. Muitos deles trabalham em bares e restaurantes, ou mesmo desenvolvem actividades económicas informais cujos clientes são os noctívagos que passam pela Rua da Atalaia. Ou até realizam as suas actividades de socialização à noite, tal como faziam antes do ímpeto turístico da cidade. Encontramos também exemplos de como a turistificação também implica uma deslocação espacial dos espaços LGTBQI+ inclusivos: o que antes era o Chueca Bar, mais tarde chamado Troika Bar, Maria Lisboa ou Q'lata, é agora La Bamba Bar, e foi comprado pelo proprietário do Bar de Copacabana, que criou o bar depois de verificar que beber cerveja e caipirinhas XL muito baratas com música de uma playlist do youtube rendia muito mais dinheiro do que o kebab take-away que foundou anos atrás. Mas mostra também o profundo racismo, classismo e machismo que existe por parte dos organizadores dos pubcrwals, quando impedem os rapazes negros de entrarem em contacto com turistas brancas ou raparigas Erasmus, excepto se for um homem negro com a aparência estética de ter um elevado poder de compra. Vale também a pena notar que o sistema de videovigilância é uma mera palhaçada, porque muitas vezes os conflitos que surgem no espaço público são auto-geridos pelas gangues que se encontram no território, cujos lideres estão interessados em não afugentar potenciais clientes. E finalmente, a Rua da Atalalia é uma área de observação muito interessante para reflectir sobre o papel da vida nocturna como fonte de bem-estar socio-emocional não só para os jovens e adolescentes, mas também para os adultos. A noite na Rua da Atalaia é profundamente intergeracional, e este é um tesouro que devemos preservar, porque a extrema mercantilização da economia da vida nocturna conduz não só (e frequentemente) a uma segregação sócio-espacial da noite, mas também a uma segregação geracional e até mesmo à marginalização das pessoas de mais de 55-60 anos, e este é um tema de investigação que gostaria de desenvolver no futuro.