Poesia e geografia em Francisco José Tenreiro | Daniel Paiva

Poesia e geografia em Francisco José Tenreiro
Francisco José Tenreiro é amplamente reconhecido como um dos maiores poetas de São Tomé e Príncipe. No entanto, apesar dos contributos de Tenreiro para o desenvolvimento da geografia portuguesa serem reconhecidos, o conteúdo da sua obra poética permanece pouco explorado pelos geógrafos.
No entanto, a poesia e a geografia de Francisco José Tenreiro são atravessadas por temas e preocupações comuns. São Tomé é o primeiro desses temas. A ilha dá tanto nome ao seu primeiro livro de poesia como à sua tese de doutoramento (Tenreiro, 1942; 1961). A relação com a Ilha de São Tomé é pessoal e afetiva – e entrelaçada com a relação com a mãe. Na poesia, a figura da mãe é presente e expressiva, por exemplo no poema “Romance de Sinhá Carlota”, onde se lê:

Teve filhos negros
que trocam hoje o peixe
por cachaça.

Teve filhos mestiços.
Uns
forros de a. b. c.
perdidos em rixas de navalhas.
Outros foram no norte
com seus pais brancos
e o seu coração
já não lembra o rostinho deles! (Tenreiro, 1982, p. 59).

Por outro lado, o tema da raça e do colonialismo marca igualmente a obra poética e geográfica de Tenreiro. Na tese sobre a Ilha de São Tomé, o tema da raça emerge na descrição da sociedade são-tomense. Tenreiro (1961) destaca a relação entre a terra e os elementos humanos em São Tomé, em especial o processo de confluência de culturas e miscigenação. O tema da cor da pele é abordado, e Tenreiro não se coíbe de abordar a marginalidade dos negros, e de negar a existência de uma sociedade plural em São Tomé, ainda que não saliente a segregação (Tenreiro, 1961, p. 103).
No entanto, é na sua poesia que Tenreiro expressa as suas preocupações com as questões sociais da raça de uma forma mais ampla:

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.

Pois é... (Tenreiro, 1982, p. 62).

No mesmo poema, a experiência do racismo e segregação é também evidenciada:

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro. (Tenreiro, 1982, p. 61).

De facto, a negritude e o pan-africanismo são tópicos centrais na poesia de Tenreiro, e é interessante que também se destaca aqui uma visão geográfica. A condição negra é cantada a partir de lugares específicos. Lugares de origem, como no poema “Mãos”:

Mãos Zimbabwe ao largo do Índico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas! (Tenreiro, 1982, p. 104).

Mas também lugares de emancipação, como as referências a Harlem no poema ‘Fragmento de Blues’ (Tenreiro, 1982, p. 105) ou a referência ao caso de McGee no poema ‘Coração em África’: “Mac Gee cidadão da América e da democracia / Mac Gee cidadão Negro e da negritude / Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro” (Tenreiro, 1982, p. 125).
Assim, a obra de Francisco José Tenreiro mostra como a poesia pode ser também um veículo poderoso para o conhecimento e a experiência geográfica.

Referências
Tenreiro, F.J. (1942). A Ilha de Nome Santo. Coimbra: Portugália.
Tenreiro, F.J. (1961). A Ilha de São Tomé. Estudo Geográfico. Centro de Estudos Geográficos.
Tenreiro, F.J. (1982). Coração em África. Linda-a-Velha: Editora África.