#107 Miguel Leal
Nome: Miguel Leal
Naturalidade: Lisboa
Idade: 36
Formação académica: Doutoramento em Geografia, especialidade de Geografia Física
Ocupação Profissional: Professor Auxiliar na Universidade de Évora
1 - Quem é a/o Geógrafo/a? Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
Em primeiro lugar, o Geógrafo é um curioso. É alguém que se interessa pelo planeta, pela origem e formação dos vários elementos da paisagem, pelas dinâmicas antigas e actuais, pela distribuição dos fenómenos no espaço e como evoluíram no tempo, pelo natural, físico, humano, social e económico. O Geógrafo é capaz usar lentes diferentes para analisar o que vê ao longe (escala global ou regional) e ao perto (escala local). Esta visão multiescalar e transversal é das maiores mais-valias do Geógrafo.
No meu caso, fiz a formação académica na Universidade de Lisboa, primeiro ainda na Faculdade de Letras e depois no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território. A minha especialização é em Geografia Física, quase sempre ligada às cheias e inundações. Depois de concluir o Doutoramento, por contingências da vida profissional, porque o percurso académico nem sempre é linear e porque o Geógrafo se interessa por vários objectos de estudo, tenho trabalhado também sobre outros temas como os incêndios rurais, a gestão florestal, a habitação e, mais recentemente, a Geografia do descontentamento.
2 - Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Comecei recentemente a exercer funções enquanto Professor Auxiliar na Universidade de Évora, algo que representa um enorme e aliciante desafio. A licenciatura em Geografia da Universidade de Évora tem, nos últimos anos, preenchido todas as vagas durante a primeira fase de candidaturas ao Ensino Superior, o que atesta o interesse dos jovens pela Geografia. A oportunidade de contribuir para a formação de futuros Geógrafos é, provavelmente, a forma mais nobre de valorizar a Geografia. Para além do ensino, a investigação é cada vez mais uma parte importante da nossa actividade. Podermos contribuir para o avanço da ciência e para uma melhor compreensão do mundo que nos rodeia é algo inerente ao espírito curioso do Geógrafo.
3 - Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
Território, espaço e dinâmicas. A Geografia estuda o território enquanto suporte físico e construído, onde decorrem as interações sociais e naturais e se estabelecem as influências mútuas entre o ambiente físico e o ser humano. O território é o objecto de estudo fundamental da Geografia, estando-lhe intrinsecamente ligado. O espaço é o conceito central da Geografia e a Geografia não pode viver sem o espaço. Cada espaço estrutura-se e pode ser moldado de formas distintas, influenciando e sendo influenciado pelas dinâmicas naturais, sociais, demográficas, urbanas, etc. Por sua vez, as dinâmicas podem transformar os territórios e as características dos territórios podem condicionar as dinâmicas. Estas podem ser naturais, humanas ou resultantes da interação entre ambas, podendo ser expressas a velocidades distintas em lugares distintos e ocorrer apenas à escala local ou estender-se a todo o planeta.
4 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Se me permitem, vou sugerir dois livros. O primeiro é Prisioneiros da Geografia, de Tim Marshall. Numa época extremamente complexa e sensível a nível geopolítico, este é um livro que realça a importância da Geografia na construção e evolução da ordem mundial. Muitas vezes, as fronteiras físicas, as características climáticas e geomorfológicas e/ou a existência de recursos naturais condicionam o traçado das fronteiras administrativas, favorecem ou contrariam as estratégias militares durante as guerras e impõem-se ou alimentam os intentos expansionistas dos líderes mundiais ao longo do tempo. Os políticos, monarcas e imperadores mudam ao longo das décadas e dos séculos, mas têm sempre de se confrontar com as mesmas condicionantes, especificidades, vantagens e desvantagens geográficas dos seus territórios e dos territórios vizinhos. E a verdade é que, à escala das décadas e dos séculos, as cadeias montanhosas, os oceanos, os continentes e os rios continuam a ser imponentes e vastos.
O segundo é Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. A principal razão para a escolha deste livro é porque nunca poderei dar outra resposta à pergunta sobre o “livro preferido” ou o “livro da minha vida”. Esta obra-prima da literatura, de final impactante, transporta-nos para a América do Sul, numa narrativa em que o espaço e o tempo têm uma importância decisiva, embora nunca sejam definidos e apresentados com verdadeira precisão. O realismo mágico de García Márquez conta-nos a vida das várias gerações da família Buendía e a evolução da aldeia fictícia de Macondo. As histórias das personagens ao longo de um século de vida são também acompanhadas pela evolução económica, urbana e dos transportes naquele local, bem como
pelo enquadramento biofísico e pela importância dos eventos meteorológicos extremos.
5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser Geógrafo?
Ser Geógrafo significa ter uma visão integrada do mundo e dos seus problemas. Acarreta uma constante curiosidade e necessidade de compreender as interações e relações complexas entre o espaço natural e/ou construído e a sociedade. A perspectiva espacial, muito associada aos Geógrafos, mas também temporal, contribui de forma decisiva para a sua abordagem holística e espírito crítico na resolução de problemas complexos e dinâmicos. A actividade diária de um Geógrafo está directamente relacionada com esta prática e com a capacidade integradora para compreender a “linguagem” das ciências naturais e sociais e para congregar diferentes saberes e conhecimentos.
6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Esta ideia vem no seguimento da resposta anterior. A visão integrada e sistémica e a capacidade de diálogo com as outras ciências são grandes mais-valias da formação em Geografia e, como tal, são características transversais aos Geógrafos. Estas competências são particularmente úteis e cada vez mais valorizadas em equipas multidisciplinares. No âmbito do ensino e da investigação, temos frequentemente de trabalhar com colegas de diferentes instituições e com diversas formações profissionais. Por outro lado, as várias ferramentas utilizadas permitem dotar os Geógrafos de competências técnicas e tecnológicas muito valorizadas, mesmo por sectores de actividade sem uma ligação muito imediata à Geografia. Por exemplo, os Sistemas de Informação Geográfica (SIG) estão actualmente incorporados nas infraestruturas informáticas e plataformas digitais de empresas e organismos públicos.
7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um Geógrafo na sociedade do futuro? E a um Geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
Ao jovem que gosta de Geografia e que está prestes a fazer a sua escolha de licenciatura ou ao estudante que está a frequentar o primeiro ano da licenciatura em Geografia, dir-lhe-ia que o caminho não é fácil, mas é desafiante e proveitoso. Os tempos em que a licenciatura em Geografia só servia para dar aulas no ensino básico ou secundário já não são condizentes com a realidade actual. O objeto de estudo da Geografia é o mundo e podemos estudá-lo e compreendê-lo de formas muito diferentes e recorrendo a diversas técnicas e ferramentas. A utilidade da Geografia nunca foi saber o nome dos rios ou as capitais de todos os países. O Geógrafo é um profissional que tem a capacidade de compreender a linguagem de outras ciências e de lidar com diferentes saberes, sendo, com alguma frequência, requisitado para participar e até coordenar equipas multidisciplinares. Para além disso, a evolução das suas competências tecnológicas tem permitido a exploração de dados e a obtenção de resultados inovadores com recurso aos Sistemas de Informação Geográfica (SIG), métodos estatísticos, modelação espacial, algoritmos de machine learning, inteligência artificial… As perspectivas de futuro e as saídas profissionais são actualmente muito mais abrangentes do que eram no passado.
8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como Geógrafo.
Escolho as cheias de Valência (Outubro de 2024). Nesta e noutras matérias, o tempo é o nosso pior inimigo. Quando a memória está fresca (leia-se, um evento ocorreu há pouco tempo), há debates sobre o assunto, convidam-se os especialistas para irem à televisão, apontam-se os erros cometidos no passado e a crónica falta de investimento, interesse e/ou preocupação para os corrigir. Por vezes, a comunicação social faz reportagens mais ou menos aprofundadas, colocando questões como “E se ocorresse um evento de precipitação em Portugal semelhante ao que aconteceu em Valência?”. A resposta já a conhecemos porque os diagnósticos e as avaliações de susceptibilidade, perigosidade, exposição, vulnerabilidade e risco estão feitos.
Entretanto, o assunto cai no esquecimento porque há outro tema da actualidade que se impõe. Provavelmente, só ouviremos falar em cheias/inundações, sismos, incêndios, etc., quando voltar a ocorrer um novo evento. Com sorte, da próxima vez, não acontecerá nada de grave e a questão será novamente varrida para debaixo do tapete.
As consequências trágicas das cheias de Valência não se devem (apenas) às alterações climáticas, até porque aquela região tem um historial bem conhecido de eventos de precipitação com elevada magnitude. É verdade que se tratou de um evento extremo e se registaram com valores recordes de precipitação, mas, ao culparem-se as alterações climáticas (que têm “as costas largas”), estamos a esquecer e/ou a desculpabilizar os erros de ordenamento do território cometidos durante as últimas décadas. Um correcto ordenamento do território teria sido suficiente para evitar a tragédia de Valência, como teria sido suficiente para evitar a tragédia da Madeira em 2010. Bastava que não se construísse em leitos de cheia, dando espaço à água, que, nestas ocasiões, vem sempre reclamar o território que outrora tinha sido seu. O ser humano esquece-se que a água é teimosa e tem memória de elefante: quando chove a água vai sempre descer as vertentes e dirigir-se para os fundos de vale que alguém teima em ocupar de forma indevida. Em Valência, muitos dos edifícios afectados foram construídos, por imprudência ou desconhecimento, nas últimas décadas. A memória, ou a falta dela, é tramada (desculpem-me o excesso de linguagem). Quem há uns meses perdeu a sua casa ou algum familiar nas cheias de Valência, provavelmente nunca tinha passado por algo semelhante, os seus pais também não, os seus avós (que talvez se lembrassem) já cá não estão para contar a história e a memória perdeu-se.
9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
Escolho uma saída de campo clássica para a escola da Geografia Física de Lisboa: a Arrábida. Como escreveu Orlando Ribeiro, a cadeia da Arrábida é um “verdadeiro museu de formas estruturais”. Assim, em poucas dezenas de km, a área que se estende desde o cabo Espichel até Palmela constitui um conjunto de locais de extraordinária diversidade geológica e geomorfológica. Ao longo dos anos, a Arrábida tem sido área de estudo de teses e outras investigações científicas no âmbito da geografia, geomorfologia, geologia, climatologia, etc.. É também uma excelente sala de aula, sendo o local ideal para as primeiras saídas de campo dos estudantes durante a sua fase de formação. Para além do interesse académico e científico, a Arrábida é dotada de uma enorme beleza cénica e paisagística, escolhida, por diversas vezes, para filmar anúncios de automóveis e até o filme de 1967: 007 - Ao Serviço de Sua Majestade.
Destaco ainda dois locais muito próximos, que fazem parte da mesma paragem da saída de campo: o Alto do Jaspe e a Serra do Risco. Na pedreira do Jaspe, desactivada nos anos 70 do século XX devido à criação do Parque Natural da Arrábida, é possível ver o antigo local de extração da designada brecha da Arrábida (também chamada mármore da Arrábida), classificada como Pedra Património Mundial/Heritage Stone pela UNESCO desde 2023 e que foi utilizada como rocha ornamental em diferentes monumentos da região. A Serra do Risco é a arriba calcária mais elevada da Europa, atingindo 380 metros de altitude no Píncaro, sendo igualmente conhecida pela sua silhueta característica. Nas palavras do poeta Sebastião da Gama: “A serra tem o ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar; é uma onda de pedra e mato, é o fóssil de uma onda”.