Jogo duplo – Conquistando o império | João Sarmento

Jogo duplo – Conquistando o império | João Sarmento, Universidade do Minho

A escultura Nkisi Soccer Dual Game, do artista congolês Hilaire Blue Huyangiko, assume por estes dias o centro de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia (MNE). Huyangiko, combina elementos da cultura ancestral congolesa (Nkisi enquanto sagrado ou divino), com referenciais da cultural popular contemporânea afro-global. Reapropria símbolos, concerta hibridez, desestabiliza identidade. Com uma bola de futebol revestida de teclas de computador por cabeça, um apito de árbitro azul com inscrição das Nações Unidas, com um corpo de madeira cheio de pregos (em que geralmente cada um significa um conflito, uma disputa, um divórcio, etc.), a escultura tem a seu lado, na base, a cabeça que já não é (Fig.1). É feliz esta escolha para o centro do mundo da exposição Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. Concebida e coordenada pela historiadora Isabel Castro Henriques, a exposição desenvolve-se em sete eixos, ou seis mitos e uma promessa. São compostos por peças museológicas e materiais gráficos, pretendem contribuir para a desconstrução de imaginários do colonialismo português: “I - Estamos em África há 500 anos”; “II – Missão Civilizadora e Progresso”; “III – Vocação Colonial e Missão Histórica”; “IV – Os Outros (Selvagens) e Nós (Civilizados)”; “V – A África Portuguesa”; “VI – A Grandeza da Nação e a Luta Armada”; e “VII – Descolonização, Independências e Legados do Colonialismo”. Numa sala demasiado exígua para a quantidade e qualidade dos materiais expostos, a sua presença neste museu em concreto é importante. Há critério nos materiais gráficos escolhidos, equilíbrio e qualidade nas análises textuais, e é com prazer que se percorre a desestabilização inteligente dos mitos fundadores da nação. Há dois soluços, no entanto, a meu ver. Por um lado, a articulação destes percursos de descolonização com as peças museológicas fica por fazer, e muitas delas, sem contextualização suficiente, continuam a ser objetos exóticos, belos, de consumo. Por outro lado, o último tema, merecia mais espaço. Tendo por subtemas o processo de descolonização, os movimentos de libertação, as novas independências e os “retornados”, discute-se pouco a prevalência da negação do racismo em Portugal. Este final da exposição, toca em vários temas contemporâneos chave, como os bairros periféricos das áreas metropolitanas, a descriminação social e racial, e a ausência de espaços públicos de memória que combatam os silêncios do pós-colonialismo português. Seguramente comporiam um oitavo eixo. Por fim, é com prazer que a obra com que nos deparamos quando entramos ou saímos do museu, no átrio do R/C, é uma escultura em mármore branco, de 2023, do moçambicano Lívio de Morais, com o nome Grito de Liberdade. Não vamos esquecer o Tempo que passou (Fig.2). Por estes dias (e até novembro de 2025), o MNE, cuja génese nos anos 50 do século XX está fortemente ligada à cultura Makonde de Moçambique, é um excelente lugar para refletir sobre a descolonização da mente e o desentorpecimento dos museus.