# 109 Sérgio Barroso
Nome: Sérgio Barroso
Naturalidade: Lisboa
Idade: 53
Formação académica: Mestre em Planeamento Regional e Urbana e Licenciado em Geografia e Planeamento Regional
Ocupação Profissional: Geógrafo, urbanista, consultor
1- Quem é a/o Geógrafo/a? Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
A minha relação profissional com a Geografia, construída ao longo de três décadas, pode dividir-se em três momentos e contextos distintos.
O primeiro teve lugar na primeira metade dos anos 90, enquanto aluno do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Foi um período fundamental, tanto pela aquisição das bases essenciais da Geografia Humana e Física – que hoje estão mais interligadas do que nunca na resposta a desafios cada vez mais complexos – como pelo contacto inicial com os métodos e técnicas do planeamento regional e urbano. Entre muitos aspetos marcantes, recordo especialmente a profunda admiração que desenvolvi pela obra de Orlando Ribeiro, fruto da forma como a Professora Raquel Soeiro de Brito a transmitia durante as aulas. Foi também aí que cresceu o gosto por uma geografia interventiva, ligada ao planeamento, inspirado por professores como José Carlos Pinto – um dos fundadores da APG – e Margarida Pereira.
O segundo momento aconteceu entre o Instituto Superior Técnico e a Faculdade de Arquitetura, como aluno do antigo Mestrado em Planeamento Regional e Urbano da Universidade Técnica de Lisboa. Foram dois anos de aprendizagem intensa e enriquecedora, partilhados com colegas de diferentes formações e com experiência profissional já bem mais sólida do que a minha. Tive o privilégio de aprender com grandes mestres, como Manuel Costa Lobo, Paulo Correia, Antunes Ferreira, Mendes Baptista, Clara Mendes, entre muitos outros. Foi nesse ambiente único, marcado pela diversidade de perspetivas e saberes, que compreendi a importância da multidisciplinaridade no planeamento – e também o reconhecimento que o papel do geógrafo já merecia nesse contexto.
O terceiro momento em parte sobreposto com o anterior, o mais longo e também o mais decisivo, corresponde às últimas três décadas, durante as quais tenho desenvolvido atividade no Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano (CEDRU), primeiro como consultor e posteriormente como Diretor. Foi um tempo determinante, desde logo pela oportunidade ímpar de trabalhar e aprender diariamente com o Professor Jorge Gaspar – uma referência incontornável que dispensa apresentações -, ou com José Manuel Simões. Mas também pela riqueza dos projetos realizados, em áreas tão diversas como a ação climática, a avaliação de políticas públicas, o planeamento regional e urbano ou o ordenamento do território, sempre em articulação com profissionais de múltiplas disciplinas de enormíssima qualidade, tanto enquanto colegas de equipa, como enquanto técnicos da administração pública.
2- Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Olhando para os muitos projetos que estamos atualmente a desenvolver no CEDRU, diria que o meu futuro imediato será fortemente marcado por três grandes temas: a ação climática, o desenvolvimento regional e a salvaguarda dos valores naturais.
Em todas estas áreas, a Geografia – enquanto ciência integradora e com forte enfoque no território – traz um valor acrescentado inegável. Confere-lhes dimensões e perspetivas que outras disciplinas, por si só, não alcançam, como a centralidade da sustentabilidade e a preocupação com a coesão territorial e social.
No caso da ação climática, por exemplo, a Geografia mostra todo o seu potencial ao permitir uma leitura integrada das características físicas, sociais, económicas e ambientais dos territórios. Esta abordagem é essencial desde a definição espacial de cenários climáticos, por exemplo à escala do clima urbano, passando pela análise das vulnerabilidades locais, até à formulação de estratégias e medidas de mitigação e adaptação que façam realmente sentido no contexto específico de cada lugar.
No domínio do planeamento e desenvolvimento regional, a capacidade da Geografia para compreender e articular dinâmicas socioeconómicas, culturais e ambientais em diferentes escalas é absolutamente fundamental. É essa leitura territorial que sustenta abordagens eficazes e que contribui para os grandes objetivos da política regional, como a coesão económica, social e territorial.
Por fim, na proteção dos valores naturais, o contributo da Geografia é igualmente decisivo. Vai muito além do simples mapeamento: ajuda a interpretar e integrar a necessidade de compatibilizar a conservação da natureza com o desenvolvimento sustentável. Essa visão holística do território – entendido como um sistema complexo – é especialmente importante em contextos como o das nossas áreas protegidas, onde a presença e o papel do Homem é, muitas vezes, essencial à preservação dos valores naturais.
3- Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
A minha visão da Geografia é profundamente inspirada na ideia de uma Geografia Ativa, tal como foi definida por Pierre George. Por isso, as palavras que escolho para a descrever não podem ser neutras, nem meramente descritivas ou analíticas.
A Geografia, para mim, não se limita a compreender a realidade espacial enquanto expressão de relações sociais, económicas, políticas e culturais – mesmo que o faça com métodos cada vez mais sofisticados. O seu verdadeiro propósito vai mais longe: deve servir para transformar essa realidade, ajudando a enfrentar desafios como a coesão territorial, a justiça espacial, as desigualdades ou os problemas socioambientais.
É essa dimensão interventiva que define a Geografia que pratico – uma Geografia que se envolve, que questiona e que procura soluções.
Por isso, se tivesse de escolher apenas três palavras para definir Geografia, escolheria: território, relações e transformação.
4 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Poderia referir muitos dos livros que me marcaram ao longo da minha trajetória como geógrafo – e muitos deles nem sequer foram escritos por autores da área da Geografia.
Mas, tendo em conta o contexto desta conversa, prefiro destacar obras de geógrafos portugueses que, mais do que me terem influenciado diretamente pela leitura, marcaram-me por aquilo que representam: a afirmação da Geografia como disciplina central na compreensão e transformação do território.
Sem desvalorizar outras obras fundamentais de Orlando Ribeiro que foram determinantes para o reconhecimento da Geografia no século XX, gostaria de destacar Geografia de Portugal, escrita em coautoria com Hermann Lautensach e Suzanne Daveau. Apesar das profundas mudanças sociais, económicas, culturais – e, sobretudo, tecnológicas – que Portugal atravessou desde então, muito do país retratado nessa obra continua a existir e a moldar a evolução social, económica física e cultural do território. Planear o futuro tem sempre de ser feito sobre um profundo conhecimento do passado.
Destaco também Portugal, os próximos 20 anos. Ocupação e Organização do Espaço, Retrospectiva e Tendências e As Regiões Portuguesas, ambos de Jorge Gaspar. Publicadas entre 1987 e 1993, estas obras assinalam a presença ativa da Geografia na construção do Portugal democrático e europeu, que então emergia. São marcos da intervenção geográfica no planeamento e na definição de políticas públicas territoriais, emblemáticas da participação que os Geógrafos tiveram, sobre diferentes formas, nas últimas quatro décadas de desenvolvimento regional.
Por fim, considero essencial mencionar O ordenamento do território como política pública, da autoria de João Ferrão. Este livro é uma referência indispensável para compreender uma das áreas em que os geógrafos mais se afirmaram nas últimas duas décadas. A capacidade de atuar em múltiplas escalas, de compreender contextos diversos e de intervir em realidades territoriais cada vez mais complexas, explica o papel central que a Geografia tem tido – desde a coordenação das duas gerações do PNPOT, à elaboração de inúmeros Planos Diretores Municipais e de Planos e Programas Especiais, sem esquecer o papel que os Geógrafos assumiram na execução desta política, tanto na administração central como local.
5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
O maior significado que posso extrair de ser Geógrafo, atendendo à atividade profissional que desempenhei até agora como consultor em políticas públicas, é o de poder assumir uma missão. Essa missão tem-se traduzido na capacidade de olhar o território como um sistema dinâmico, em constante evolução, onde se cruzam dimensões físicas, sociais, económicas, culturais e ambientais e em contribuir, de alguma forma, para a sua transformação, tornando-o mais justo e mais sustentável, propondo medidas e intervenções adequadas às especificidades de cada lugar.
6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Exercendo a minha atividade profissional no CEDRU, é inevitável que os parceiros reconheçam a minha formação em Geografia. Agora, o que isso significa para eles ou como é que se manifesta no trabalho que desenvolvo… isso, na verdade, só lhes poderia ser perguntado a eles.
Ainda assim, gostava de partilhar duas ideias a este respeito.
A primeira tem a ver com o reconhecimento que, muitas vezes, nos antecede. Lembro-me bem da primeira vez em que senti claramente esse reconhecimento do papel do geógrafo no planeamento. Foi em 1996, numa entrevista com o Professor Manuel Costa Lobo, no âmbito da seleção de candidatos para o Mestrado em Planeamento Regional e Urbano. O interesse genuíno que demonstrou pela minha formação e pela minha experiência, assim como a importância que atribuiu aos geógrafos nas equipas de planeamento, transmitiram-me uma enorme responsabilidade, mas também uma grande motivação e confiança no futuro profissional que podia construir. Sou profundamente grato a quem me proporcionou esse momento e procuro, desde então, estar à altura desse reconhecimento – e contribuir para que ele se mantenha e se reforce.
A segunda ideia prende-se com o impacto da Geografia na forma como pensamos e agimos – tanto institucionalmente, no CEDRU, como a nível pessoal. O exercício aplicado de uma ciência que tem, na sua essência, a capacidade de compreender e integrar múltiplas dimensões – físicas, sociais, económicas, ambientais – molda-nos como profissionais com uma forte vocação para o trabalho em rede e para a construção de parcerias.
Num tempo em que os sistemas sociais, económicos e ambientais são cada vez mais complexos e interdependentes, mas em que também enfrentamos uma maior fragmentação, polarização e competição aos mais diversos níveis, a Geografia oferece-nos algo único: a capacidade de estabelecer pontes entre diferentes áreas do saber, entre equipas técnicas, entre níveis de governação. E mais do que isso – permite-nos valorizar verdadeiramente o contributo de todos na construção de soluções transformadoras. E é exatamente isso que procuro traduzir no trabalho que faço.
7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
A primeira coisa que diria a um jovem que está a iniciar o seu percurso universitário em Geografia é algo que comentei com os meus colegas no primeiro ano de curso — e que, na altura, não foi propriamente bem recebido, talvez por ser inspirado pela admiração que já então tinha pelos grandes Mestres: “Com trabalho, talvez daqui a quarenta anos consigamos ser geógrafos.”
Hoje, é provável que esta seja das últimas coisas que alguém ouve ao entrar na universidade, numa altura em que o ensino superior também passou a ser moldado por lógicas transacionais e por estratégias de marketing que procuram criar satisfação imediata. Mas, mais do que nunca, acredito que uma ciência como a Geografia – que não se define pelo domínio de uma única técnica, mas pela capacidade de integrar saberes e interpretar realidades complexas – exige um percurso longo, contínuo e exigente de aprendizagem.
Há no entanto razões para que o jovem se sinta animado: a Geografia terá um papel absolutamente central na sociedade do futuro. Ao mobilizar tanto as novas como as “velhas” ferramentas da ciência de dados, as tecnologias geoespaciais ou os métodos de inquérito territorial, a Geografia estará na linha da frente para enfrentar os maiores desafios deste século: as alterações climáticas, a sustentabilidade, as desigualdades, a transição energética, a inovação ou as novas dinâmicas territoriais.
Isso abre um enorme campo de intervenção e de múltiplas oportunidades profissionais. Mas traz consigo, também, grandes responsabilidades – nomeadamente ao nível ético. É essencial que a intervenção geográfica não perca o seu compromisso com o bem comum, com a justiça espacial e com uma abordagem crítica e construtiva da realidade.
Em suma, diria que a Geografia é uma ciência de futuro. Mas é, sobretudo, uma ciência com propósito.
8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
Um dos temas mais prementes da atualidade prende-se com a crescente dificuldade no acesso à habitação em Portugal. Esta crise motivou alterações profundas ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, com a introdução de um regime excecional de reclassificação casuística de solo rústico em urbano, com o objetivo declarado de facilitar a criação de soluções habitacionais.
Contudo, esta alteração — incorretamente apelidada de “alteração à Lei dos Solos” — gerou forte contestação por parte de especialistas, ordens profissionais e organizações da sociedade civil. As críticas centram-se no facto de a medida não responder de forma eficaz ao problema a que se propõe e de representar uma inversão preocupante no modelo de desenvolvimento sustentável e coeso do território, consagrado na Lei de Bases da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo (2014), cuja concretização plena tem sido dificultada pelo atraso na adequação da maioria dos Planos Diretores Municipais ainda em vigor.
Enquanto geógrafo, é importante sublinhar que a crise da habitação deve ser analisada numa lógica territorial e multiescalar. O problema transcende as fronteiras nacionais. No caso português, o fenómeno apresenta contornos particularmente graves devido à ausência histórica de instrumentos eficazes de política pública de habitação, tanto na provisão direta como na dinamização do mercado de arrendamento. As implicações sociais estão a revelar-se dramáticas; os efeitos urbanísticos remetem para lógicas descoordenadas de expansão urbana e de rápida proliferação de núcleos de barracas, típicas dos anos 1980; e os impactos económicos são severos, comprometendo a capacidade do país em reter e atrair população jovem e qualificada, especialmente nas áreas metropolitanas.
A formulação de uma política de habitação, num contexto de emergência, exige medidas inovadoras e corajosas, mas é indispensável estabelecer que, do ponto de vista geográfico, o solo rústico não é um espaço vazio ou disponível por defeito. Desempenha funções ambientais, agrícolas, ecológicas e paisagísticas fundamentais para a resiliência territorial, a segurança alimentar e o equilíbrio climático.
9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
Recomendaria, entre o final deste ano e o início do próximo, uma visita às 31 comunidades em situação de desvantagem social e económica da Área Metropolitana de Lisboa que estão a ser apoiadas pela iniciativa “Comunidades em Ação – Operações Integradas Metropolitanas”, no âmbito do PRR.
Estamos a falar de mais de 600 projetos em curso, que abrangem áreas tão diversas como a requalificação de espaços urbanos, a modernização de equipamentos, a dinamização da cultura, da cidadania e do empreendedorismo, ou ainda a promoção da saúde pública e o combate ao abandono escolar. Mobilizando autarquias, escolas, associações locais e entidades do terceiro setor.
É certo que os problemas destas comunidades não se resolvem de um dia para o outro, mesmo com intervenções integradas de três anos. No entanto, nunca se fez nada de semelhante na Área Metropolitana de Lisboa – nem em termos de escala, nem na forma como foram desenhadas abordagens integradas e participadas, com o envolvimento de múltiplos atores e especialmente com a partilha de experiências entre comunidades.
Mais do que um marco nas políticas urbanas, esta iniciativa tem o potencial real de ajudar a contribuir para transformar estas comunidades. E embora o impacto dependa também da continuidade do trabalho, é inegável a relevância e o alcance desta intervenção. A Área Metropolitana do Porto está a desenvolver um projeto semelhante, também ele digno de uma visita de campo.
Ambas as iniciativas oferecem oportunidades únicas para compreender, no terreno, os desafios e as possibilidades de atuação em contextos de vulnerabilidade urbana, onde as dimensões económicas, sociais, culturais, de mobilidade e acesso aos equipamentos públicos se colocam, – e são, por isso, experiências particularmente enriquecedoras para qualquer geógrafo ou estudante de Geografia.