#98 Daniel Paiva
Nome: Daniel Paiva
Naturalidade: Odivelas
Idade: 37
Formação académica: Doutoramento Europeu em Geografia (Universidade de Lisboa)
Ocupação Profissional: Investigador no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa
Outros:
1- Quem é a/o Geógrafo/a? Em que áreas trabalha e de que forma a Geografia faz parte da sua vida?
O meu campo de investigação é o urbanismo afetivo. Mais concretamente, estudo a criação e o design de experiências emocionais em espaços urbanos, com um foco em espaços de consumo, turismo e lazer, especialmente na Europa e na América do Sul. Os meus estudos podem dividir-se em duas linhas relacionadas. Por um lado, tenho estudado como o urbanismo contemporâneo usa a criação de atmosferas afetivas em projetos de transformação urbana para promover o consumo e o turismo através da emoção, chamando a atenção para a exclusão social implícita que ocorre quando se transformam espaços públicos orientados para a comunidade em palcos de consumo orientados para a economia das experiências. Em resposta a esta problema, por outro lado, tenho-me dedicado à experimentação com a introdução de ferramentas digitais, nomeadamente a biodeteção e a realidade estendida, em processos participativos de design urbano. Com isto, pretendo encontrar métodos que permitem criar um urbanismo afetivo orientado para as necessidades e a qualidade de vida das comunidades locais, em alternativa ao urbanismo orientado pela economia das experiências.
2- Quais são os projetos para o futuro imediato? E de que forma valorizam a Geografia?
Recentemente, coordenei o projeto UrBio – Making Urban Planning and Design Smarter with Participatory Mobile Biosensing, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que terminou no fim de 2023. O objetivo deste projeto foi desenvolver e testar uma metodologia mista inclusiva e participativa que utiliza dados de biodetetores para planear e desenhar espaços urbanos saudáveis, conviviais e sustentáveis. Foi um dos primeiros projetos a nível mundial a integrar a biodeteção em metodologias participativas de design urbano. Neste projeto, usámos um biodetetor de atividade eletrodérmica, um indicador fisiológico que expressa o nível de estímulo emocional de um indivíduo. Estes dados permitiram-nos conhecer em maior profundidade como as pessoas reagem emocionalmente ao espaço urbano, e co-construir cenários de intervenção que melhorassem a experiência urbana. Neste momento, a equipa UrBio está focada em disseminar o conhecimento produzido neste projeto, estando a trabalhar na quantidade imensa de informação que obtivemos durante o trabalho de campo que realizámos em Cuiabá (Brasil), Lisboa (Portugal) e Varsóvia (Polónia). Esperamos que o conhecimento deste projeto possa inspirar urbanistas em todo o mundo a explorar métodos participativos inovadores para tornar as nossas cidades mais saudáveis e sustentáveis.
3- Se tivesse de definir Geografia em 3 palavras, quais escolhia?
Espaço, lugar e atmosfera.
A geografia é o estudo da nossa relação com o espaço, uma relação a partir do qual se constrói um sentido de lugar – a base da nossa pertença ao mundo. Na nossa experiência espacial, a atmosfera é o meio fundamental a partir do qual se cria o sentido de lugar. A atmosfera é mais do que a composição de gases que cobre a superfície do planeta Terra; é o meio onde a luz, os sons e as fragâncias que compõem o nosso mundo experiencial viajam, formando assim a base sensorial, cognitiva, afetiva e emocional da nossa relação com o espaço e da construção de um sentido de lugar. Espaço, lugar e atmosfera são, portanto, os conceitos basilares não só da ciência geográfica, mas também da nossa existência.
4 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Para mim, o livro ‘For Space’ de Doreen Massey, publicado em 2005 pela Sage, é a referência fundamental da geografia contemporânea. O livro é o culminar do pensamento geográfico de Doreen Massey, uma geógrafa britânica que se especializou no cruzamento entre a geografia do trabalho e a geografia do género. Desde os anos 90, Massey tentou fazer-nos ver que o espaço e os lugares não podem ser vistos como inertes ou fechados, porque estão sempre num processo de construção. Massey trouxe a ideia de sentido de lugar para o mundo globalizado, mostrando como a nossa ligação ao mundo é ainda feita a partir da construção de um sentido de pertença aos lugares, mesmo que os lugares devam ser entendidos como abertos, interconectados e nunca terminados. Em ‘For Space’, Massey expande esta ideia do sentido global do lugar, descrevendo em detalhe a sua visão sobre o conceito de espaço. Para Massey, falar de espaço e falar de lugar é a mesma coisa, pois é sempre na relação entre seres (humanos e não só) que emerge um sentido de espacialidade e de pertença. Assim, não há espaço abstrato, nem lugar eterno. Espaço e lugar, para Massey, são entidades vivas, sempre em movimento, sempre em mudança, sempre um produto das relações que estabelecem e das relações que não se estabelecem entre humanos, animais, plantas, solos, atmosferas e tecnologias. Para mim, aprender a ver o mundo desta perspetiva foi transformador, no sentido em que me obrigou a pensar como a minha prática geográfica se pode sintonizar com espaços e lugares permanentemente em construção, o que leva a profundas interrogações epistemológicas e metodológicas.
5 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
A geografia ensina-nos muito sobre o planeta em que vivemos, sobre o modo como nos relacionamos com ele, e através disso, também nos ensina muito sobre nós próprios. Creio que é essa a maior relevância da geografia.
6 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Enquanto investigador, a interdisciplinaridade é fundamental. O trabalho que faço tem sobreposições significativas com outros trabalhos a serem realizados na arquitetura, urbanismo, sociologia e antropologia. Ao trabalhar frequentemente com colegas destas disciplinas em vários países na Europa e na América do Sul, noto que a geografia é uma disciplina científica de referência. É notório que o trabalho conceptual de geógrafos e geógrafas sobre espaço, lugar, paisagem e atmosfera é uma referência para outras disciplinas que tocam nestes assuntos, que metodologias essenciais para o estudo da espacialidade desenvolvidas por geógrafos são apropriadas por outros académicos de diversas disciplinas, e que as revistas científicas de geografia são lidas muito para além dos departamentos de geografia.
7 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
As pessoas – nem todas jovens – que estão a iniciar-se na ciência geográfica fazem-no numa altura em que o mundo precisa da Geografia. O que eu diria é que o mundo precisa de vocês. Enfrentamos desafios difíceis: alterações climáticas, extinção de espécies, exploração laboral, crises económicas, guerras e militarização, epidemias e pandemias. A Geografia pode contribuir – e contribui – para a solução de todos estes desafios. Escolher a Geografia é escolher não baixar os braços e desempenhar um papel de relevância na proteção da natureza, da justiça social e da paz.
8 - Comente um acontecimento recente, ou um tema atual (nacional ou internacional), tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
No dia em que escrevo esta resposta, abro o jornal e vejo uma notícia sobre as reações políticas a um ataque a imigrantes no Porto. O ataque em questão, segundo o que foi reportado em diversos media, envolveu seis ou sete homens portugueses que, durante a noite de 3 de maio de 2024, agrediram vários imigrantes na cidade do Porto. As agressões foram realizadas primeiro em espaço público, e depois dentro de uma habitação onde moravam dez imigrantes. Ainda segundo as notícias que têm saído, os agressores terão ligações a grupos xenófobos de extrema-direita e a motivação para o ataque foi um rumor que os imigrantes agredidos seriam responsáveis por uma série de assaltos realizados nas semanas anteriores na mesma área da cidade.
A violência destes ataques foi unanimemente condenada, incluindo pelo Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira. Apesar desta evidente condenação da violência, as consequências políticas que o líder do Município do Porto retira deste evento são reveladoras da ausência de um sentido de lugar de que a cidade portuguesa necessita desesperadamente.
Semanas antes deste ataque por um grupo com ligação à extrema-direita, Rui Moreira tinha autorizado a realização de uma manifestação anti-imigração precisamente no centro do Porto, organizada por um grupo de extrema-direita liderado por uma pessoa que está presentemente a ser julgada por um crime de discriminação e incitamento ao ódio. Na sequência do ataque, Rui Moreira não faz menção a esta manifestação. A energia de Rui Moreira é antes dirigida para um apelo à extinção da Agência para Integração de Migrantes e Asilo e um pedido para que o financiamento desta agência seja atribuído às forças policiais.
À partida, a posição de Rui Moreira parece estranha porque a sua resposta a um evento de violência parece ser ignorar o agressor e desinvestir na proteção da vítima. Mas mais que o argumento desencaminhado de Rui Moreira, o que é evidente do ponto de vista geográfico é o que não é proferido: a ausência de uma visão de sentido de lugar para a cidade do Porto.
Se um evento revela que um espaço urbano parece agressivamente dividido, com populações não só segregadas, mas já numa escalada de violência concreta, não deveria o responsável máximo pelo espaço urbano portuense ter palavras a dizer sobre a construção de um sentido de lugar coletivo na cidade do Porto? Onde está a política de placemaking? Onde está a construção de infra-estruturas sociais? Onde está a curadoria de espaços públicos que fomentem o contacto e a comunicação? Onde está a promoção da convivialidade e vitalidade dos bairros?
A geografia pode desempenhar um papel fundamental na promoção da paz social, cada vez que for capaz de participar na construção de espaços vibrantes que ancoram comunidades fortes, onde o crime e a violência não têm razão de ser. As geógrafas e os geógrafos portugueses e lusófonos – e os seus colegas nas ciências sociais e na arquitetura – têm produzido muito conhecimento sobre que passos tomar para o conseguir. Era bom que os responsáveis pelas nossas cidades descobrissem esses trabalhos.
9 - Que lugar recomenda para saída de campo em Portugal? Porquê?
A minha recomendação para uma saída de campo que qualquer leitor pode realizar, mesmo estando fora de Portugal, é um lugar alto.
A ciência geográfica sempre beneficiou de lugares altos para conhecer o espaço. Por vezes, isso implicou subir até lugares altos para se observar a paisagem, embora a tecnologia – os aviões, os drones, os satélites - nos tenha facilitado a vida, oferecendo outras maneiras de se ver a paisagem de um modo extensivo. Não obstante os benefícios que estas tecnologias oferecem, subir até um lugar alto ainda é um exercício geográfico revelador.
A minha sugestão para a saída de campo é a seguinte.
O primeiro passo é pensar qual é o lugar mais alto na nossa relativa proximidade. O segundo passo será, obviamente, levantarmo-nos, provavelmente sair de casa ou do edifício onde estamos, e começarmos a deslocarmo-nos em direção a esse lugar alto.
O terceiro passo, quando já estivermos no lugar alto, não tem nada a ver com o lugar alto. Como geógrafos e geógrafas, é nosso dever questionar o modo como a nossa relação com o espaço se desenvolve. Existe então uma série de questões que podemos colocar:
Como identificámos o lugar alto? O que a nossa escolha diz sobre o nosso conhecimento geográfico imediato – o nosso mapa mental? Que tecnologias usámos para identificar o lugar alto ou saber o melhor trajeto para chegar ao lugar alto? Estas questões podem ajudar-nos a perceber como o conhecimento sobre os lugares é construído num mundo cada vez mais mediado por tecnologias de informação geográfica.
Como nos deslocámos ao lugar alto? Que meios de transporte usámos? Esses meios de transporte são gratuitos? De que forma as nossas capacidades físicas facilitaram ou dificultaram o nosso acesso ao lugar alto? Estas questões são úteis para compreendermos como não só o espaço afeta a acessibilidade, mas também como a mobilidade é socialmente diferenciada.
Quais são as condições de acesso ao lugar alto? É um espaço público ou privado? Quem pode aceder? É preciso pagar para aceder a este lugar? Estas questões ajudam-nos a ter uma perspetiva crítica sobre como e para quem o espaço é produzido, suscitando reflexão sobre segregação e justiça espacial.
Resolvidas estas questões, podemos fazer o que um geógrafo ou uma geógrafa deve fazer melhor: observar e interpretar. É hora então de tirar proveito dos benefícios de um lugar alto e analisar o espaço que se desvenda perante nós. Que paisagem se apresenta perante nós nesse lugar alto? Como se conjugam os elementos naturais e humanos nessa paisagem? Que divisões morfológicas, funcionais, económicas e sociais conseguimos perceber nesse espaço, e o que elas revelam sobre a organização espacial do nosso território? Que representações e narrativas sociais e culturais conseguimos ler nessa paisagem? E que ambiência emerge dessa paisagem – que sentimentos, emoções e sentidos de pertença são evocados por essa visão?
As respostas a estas questões podem abrir vias de reflexão significativas sobre o espaço onde vivemos e como nos inserimos nele – mostrando como uma perspetiva geográfica sobre o que nos parece mais familiar pode sempre desvendar como o mundo que habitamos é construído, e como isso molda as nossas práticas.