# 64 Jorge Malheiros

Jorge Malheiros | Geógrafo; Docente e Investigador (CEG-IGOT-ULisboa)

Nome: Jorge Malheiros
Naturalidade: Lisboa
Idade: 55
Formação académica: Doutoramento em Geografia
Ocupação Profissional: Geógrafo; Docente e Investigador (CEG-IGOT-ULisboa)
Outros: Membro das Direções do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e da Associação Cívica Participar+; Membro do Conselho para as Migrações (órgão de consulta do Alto-Comissariado para as Migrações-ACM)

1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Nos diferentes momentos do ciclo de vida são diversos os livros cuja leitura é marcante. É possível optar por obras mais explicitamente orientadas para atividade de reflexão e investigação no âmbito da Geografia, com destaque para o espaço urbano que tem merecido maior atenção da minha parte, como Social Justice and the City de David Harvey ou a Urbanização Desigual de Milton Santos que nos ajudam a perceber a génese e caraterísticas da cidade capitalista e as componentes de injustiça que a marcam. Uma leitura destes dois textos escritos no início da década de 1970, contribui também para contrariar as hipóteses de generalização e as interpretações (mesmo críticas) assentes no pensamento ocidental hegemónico. E (re)ler Milton Santos evidencia a relevância dos contributos da Geografia Lusófona contemporânea, que incluem outros “clássicos” como Ilídio do Amaral, Pereira de Oliveira, Teresa Barata Salgueiro ou Jorge Gaspar em Portugal, Roberto Lobato Correa, Maurício de Abreu, Ana Fani Carlos ou Maria Adélia Souza no Brasil, para referir apenas alguns casos situados no âmbito, mais ou menos específico, da Geografia Urbana, aqui escolhida como temática-exemplo. 
Mas “não se faz bem Geografia quando se faz só Geografia”, terá dito com acerto Orlando Ribeiro. Transpondo isto para as nossas leituras, as reflexões que fazemos sobre o espaço geográfico e os seus desafios e problemas incorporam necessariamente perspetivas, ideias e noções que decorrem da leitura de obras produzidas em outros campos disciplinares, da filosofia à física, da economia à política e às ciências naturais. E depois há a literatura, essencial para estimular a paixão, a imaginação e a criatividade, ingredientes essenciais para o desejo de “saber mais”, o processo de questionamento sistemático que carateriza a atitude científica, também na Geografia. E as obras literárias ajudam-nos a escrever melhor, a expressar as nossas ideias de modo mais claro, combatendo o modo formatado, estereotipado e aborrecido que a denominada fast science contemporânea vai impondo na denominada escrita científica. E podemos aprender sobre lugares, paisagens, relações espaciais – não é fantástico interpretar a magia da Veneza de Pratt através do olhos de Corto Maltese; percorrer a Índia, o Caribe, parcelas de África ou o Sul de Inglaterra com a leitura por vezes introspetiva de Naipaul; compreender a desintegração dos processos socio(espaciais) numa aldeia nigeriana com a penetração do colonialismo britânico pela mão de Chinua Achebe e acabar nos bairros e vielas do Cairo, quase transformado numa personagem geográfica, com Naguib Mahfouz? 
Mas afinal, com tão longo introito, de que me penitencio, onde está o livro escolhido, que me marcou e recomendo? Seleciono dois e não um – é da minha natureza pouco disciplinada… - e fico-me pela literatura. As razões da escolha prendem-se com o facto destas obras corresponderem a leituras relativamente recentes, me suscitarem emoções e o sentido da descoberta, dos espaços e do seu significado, das relações que evocam ou proporcionam. Trata-se do Viajante Magnífico de Yves Simon e de Memórias de um Gato Viajante de Hiro Arikawa. O termo “viajante” une os dois textos e remete para essa ideia de percorrer o território e da condição de descoberta que lhe está associada, sendo esse tipo de descoberta a que carateriza a condição do geógrafo. Podemos assumir que são textos algo singelos, mas capazes de gerar emoções suscitadas por lugares ou pessoas posicionadas em lugares. No Viajante Magnífico, cuja leitura devo à Isabel André (in memoriam), ela própria uma geógrafa magnífica que nos deixou cedo demais, o personagem principal percorre, na sua interpretação, os “lugares dos começos”, que marcam uma rutura e abrem um novo início para a humanidade, e que incluem o Lago Turkana no Quénia, Hiroxima no Japão e o Cabo Canaveral na Florida. Mas há uma constante espacial no livro, uma base para a vida quotidiana que é Paris, uma das mais belas capitais europeias, lugar de ilusão e descoberta, de relação íntima, de tensões e paixão. No livro de Arikawa, um gato transformado em narrador atravessa o Japão de carro com o seu dono, revelando-nos uma sociedade solitária e envelhecida ao mesmo tempo que invoca, com toques de humor e emoção, relações passadas, experiências da vida e o significado da amizade. E tudo isto é apresentado num quadro de paisagens que se sucedem, do Japão urbano de Tóquio que foi drenando a população do país até aos espaços rurais, onde surgem atividades turísticas e agrícolas. E passamos por costas escarpadas e um oceano ruidoso e batido, sentimos a beleza do monte Fuji, o clássico das cerejeiras-em-flor e a condição cristalina das neves no norte do país, na ilha de Hokkaido. 

2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
A minha condição de geógrafo não é um elemento determinista; muito do que acontece no meu quotidiano não tem a ver com a Geografia. Dito isto, a minha identidade formativa e profissional é geográfica o que significa que a Geografia está frequentemente presente no modo como interpreto os processos quotidianos, sendo evidentemente indissociável da minha prática profissional. Ademais, tenho um entusiasmo grande pela Geografia, creio que se pode mesmo dizer “uma paixão”, gostando do que faço profissionalmente, apesar do taylorismo da correção de dezenas ou mesmo centenas de testes, de um sistema de avaliação conservador que tenho dificuldade em modificar e das práticas burocráticas que, por vezes, parecem inúteis, mas aparentam eficiência num contexto de gestão com poderes concentrados que desaprovo.
Dito isto, com frequência dou por mim a valorizar as dimensões geográficas que me ajudam a interpretar e tentar compreender os processos simples do quotidiano, da justificação para o sucesso ou insucesso das lojas do bairro em função da sua localização específica até às razões que justificam as dinâmicas dos padrões espaciais dos clubes principais de várias modalidades desportivas a escalas diversas, passando pelos impactos da organização do espaço de uma qualquer sala nas relações entre as pessoas que a utilizam.
No domínio do trabalho, considero-me um privilegiado por “ser forçado” a mobilizar os elementos da minha identidade profissional e formativa nas atividades quotidianas de ensino e investigação. Ao dar aulas de Geografia procuro mostrar como as teorias geográficas (sobre a organização dos lugares, os efeitos da distância, a difusão espaço-temporal das inovações, a qualidade dos lugares, a justiça espacial…) são essenciais para compreender o mundo a escalas diversas e atuar sobre ele. Este “atuar” corresponde à atividade prática do geógrafo, contribuindo para resolver problemas concretos de regiões e lugares específicos em que temos de localizar equipamentos, pensar no acesso a recursos, entender os efeitos da segregação espacial ou analisar o modo como o nosso quotidiano cada vez mais estruturado em torno de uma presença no espaço virtual se conjuga com as nossas vidas no espaço material. Também isto se ensina e se investiga, embora nem todos os projetos em que participo tenham uma dimensão geográfica explícita, havendo alguns mais marcados pela análise demográfica ou pelas explicações de natureza política ou socioeconómica… mas acabo sempre por regressar à Geografia. E neste caminhar, no sentido de Paulo Freire, ensino e aprendo simultaneamente. 

3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Sim, embora reconheça a existência de nuances e de áreas de sobreposição. Quero com isto dizer que a natureza da ciência geográfica e o facto de, por um lado eu a posicionar no quadro das ciências sociais e, por outro, assumir que a prática da interdisciplinaridade é a melhor forma de dar resposta a muitos problemas, originam, por vezes, confusões na interpretação exógena da minha formação e da minha identidade profissional que é, resolutamente, de geógrafo.
Entendo que a Geografia se posiciona nas ciências sociais porque o seu maior contributo para a sociedade resulta da possibilidade de interpretar o significado dos processos e das variáveis geográficas (dos elementos físicos como a morfologia, as exposições ou o risco sísmico até às variáveis geográficas strictu sensu como a distância ou a localização) no modo como os seres humanos organizam as suas vidas – práticas e mesmo emocionais – e as suas tarefas. Ficarmos pela primeira parte significaria fazer geologia, geofísica ou climatologia; ficarmos pela segunda leva-nos à economia, à psicologia ou à sociologia. Ao juntarmos ambas as componentes, de modo mais ou menos explícito, damos forma a um contributo científico original e acrescentamos valor; isto consiste em fazer Geografia e esta posiciona-se no quadro das ciências da sociedade. 
Entre os geógrafos, refere-se por vezes a Geografia como uma “ciência de charneira” precisamente por se tratar de uma disciplina muito aberta a montante (vai beber muitos elementos a outros saberes) e que, por isso, contata bastante com os dialetos específicos de outras áreas científicas, dialogando “bem” com estas. Esta capacidade de “interação disciplinar” é efetivamente uma mais-valia da Geografia, mas ela seria insuficiente se não existissem contributos específicos em termos teórico-conceituais e aplicados que, como vimos, giram em torno do que designámos como processos e variáveis espaciais que implicam a mobilização de conceitos como lugar, região, organização espacial ou escala. 
De qualquer modo, porque os problemas que correspondem aos grandes desafios da sociedade são preocupação comum a várias ciências sociais, variando a perspetiva de abordagem e o denominado “centro de interesse”, para utilizar os termos de Sedas Nunes, há margens de sobreposição que inevitavelmente emergem, inclusive devido a comunalidades nos métodos utilizados e ao reforço do diálogo disciplinar. 
Ora esta situação acentua-se quando a atividade que se desenvolve implica um forte trabalho interdisciplinar, precisamente porque a compreensão “total” dos problemas obriga ao cruzamento de olhares e à construção de respostas que envolvem contributos das várias disciplinas. Em larga medida, tem sido esta a minha prática ao longo dos anos, como atestam os projetos que tenho desenvolvido com sociólogos, economistas, arquitetos ou antropólogos. Talvez por isto e por trabalhar com frequência questões demográficas, de desigualdade e (in)justiça socio espacial em meio urbano, é frequente jornalistas classificarem-me como demógrafo ou sociólogo, acontecendo isto também com alguns colegas geógrafos que parece perceberem-me como um híbrido, uma espécie de socio-geógrafo. Note-se que entre os sociólogos, alguns amigos brincam, referindo que me fui afastando da Geografia e transformando em sociólogo, com preocupações espaciais, mas um quasi-sociólogo.
Não obstante estas sobreposições, no quadro do trabalho interdisciplinar há frequentemente o reconhecimento da formação em geografia, visível através da solicitação de contributos que incorporem a identificação e a explicação de padrões espaciais em mudança e, também, o recurso a métodos “típicos” da Geografia como o recurso à cartografia e aos sistemas de informação geográfica. Ao longo do último ano tenho vindo a reforçar o trabalho em colaboração com especialistas das ciências exatas e naturais, emergindo daqui, curiosamente – ou talvez não -, uma valorização da formação em Geografia que, embora facilitada pela sua abertura disciplinar, assenta no reconhecimento de algumas competências específicas no domínio da análise das mobilidades humanas ou da organização segregada dos espaços urbanos.

4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
Diria que a Universidade deve ser desfrutada como um tempo e um espaço de liberdade; liberdade para pensar, refletir, aprender e interagir com os outros, professores e colegas, dentro e fora da sala de aula. Diria ainda para não desprezarem a teoria, pois a partir da mobilização do raciocínio mais abstrato e dos conceitos conseguimos compreender melhor as questões específicas, perceber a sua complexidade e causas profundas e produzir respostas de mais qualidade. Diria também que é fundamental desenvolver o espírito crítico e de questionamento dos problemas, mas que para fazê-lo é essencial ler e estudar para entender as componentes dos processos e o modo como estas se ligam, perceber que tipo de análises e explicações têm sido avançadas por especialistas e investigadores. No âmbito académico não podemos começar por criticar as dificuldades de acesso à habitação nas cidades portuguesas e os défices das políticas neste domínio sem compreender os processos que os condicionam. Do mesmo modo, falar de “crise dos refugiados” implica perceber contextos geográficos de origem, corredores migratórios, combinações de motivos de migração…    
E assim chegamos à Geografia. Se bem que a escolha de um curso superior dependa, sobretudo para os jovens de hoje confrontados com um mercado de trabalho hiper-competitivo e marcado pela precariedade, de elementos como a “empregabilidade potencial” ou uma certa perceção da valorização social medida (excessivamente) através da famosa “média de entrada”, as opções devem também conter uma componente (a principal?) relativa ao interesse e entusiasmo com a perspetiva da disciplina, as temáticas e problemáticas mais frequentes que aborda. Aos 18 ou 19 anos, perante perspetivas de formação e vida mais longas, que vão exigir reciclagens e atualizações frequentes, estamos a tempo de mudar, de nos reorientar ou especializar a posteriori em mestrados, doutoramentos ou formações avançadas. 
Pela diversidade de temáticas que aborda, por relacionar elementos das ciências naturais com processos sociais, os motivos que podem levar um ou uma jovem a querer formar-se em Geografia são diversos e certamente muito diferentes daqueles que me levaram à disciplina há quase quarenta anos, num mundo onde não havia o verbo “googlar” e em que o meu fascínio por “lugares distantes”, sobretudo do hoje denominado Sul Global, me levava a percorrer atlas e mapas, complementados com a leitura de romances de viagens. Se isto me atraiu para a Geografia, percebi posteriormente que foi sobretudo o meu interesse e a necessidade de compreender melhor as injustiças e desigualdades no acesso a recursos que posicionavam algumas pessoas em “áreas luminosas” e outras em “áreas opacas”, para utilizar a terminologia feliz de Milton Santos, que me levaram a procurar respostas e uma formação avançada na disciplina. 
Seria tolice dizer a um ou uma jovem no final do primeiro quartel do século XXI que ignore a dimensão da empregabilidade ou do reconhecimento social na escolha do seu curso; as pessoas defendem-se e vão-se preparando (e bem) para “entrar no futuro”. Contudo, a afinidade que sentem em relação à disciplina, a curiosidade em saber mais sobre as respostas que parece proporcionar em relação a temas que suscitam mais interesse devem ser outras dimensões essenciais no processo de escolha. Fazer o que se gosta é um elemento crucial do processo de “fazer bem” e “fazer bem” é uma condição necessária do sucesso.
E a Geografia e os problemas a que procura dar resposta têm conhecido um processo de valorização nos últimos anos. Há 15-20 anos atrás, emergiu um certo discurso de desvalorização da disciplina, apoiado em narrativas assentes em ideias de que a globalização, indissociável do progresso nos transportes e comunicações, estaria a gerar um mundo isotrópico em que as diferenças entre os espaços geográficos se estavam a tornar progressivamente irrelevantes e que o papel da identidade geográfica e do espaço como mediador de relações sociais deixariam de contar.
Felizmente, a última década foi marcada por um percurso inverso, tendo-se assistido a uma revalorização do conhecimento geográfico. As preocupações crescentes com as alterações climáticas e os seus impactos apelam cada vez mais a especialistas com competências nas ciências naturais e nas ciências humanas. O crescimento das tensões geopolíticas do século XXI e a maior atenção conferida à dimensão geopolítica enquanto elemento condicionador do desenvolvimento e das relações internacionais tem vindo a colocar o foco em fatores geográficos, da geomorfologia e dos recursos naturais até ao potencial demográfico e às matrizes culturais e identitárias territorialmente inscritas. A concentração da maioria da população mundial em cidades chama também a atenção para os desafios da mobilidade e da sustentabilidade urbana, incluindo-se aqui a habitação e a qualidade do habitat, indissociáveis dos problemas de segregação espacial e das injustiças no acesso aos recursos urbanos. 
Será a partilha e o debate de exemplos como estes, que relevam a importância das competências geográficas para a resolução de problemas fundamentais do mundo e da sociedade contemporânea, que permite chamar a atenção para o valor e a profunda utilidade social de fazer uma formação avançada em Geografia. Mas deve-se ir mais longe, ser mais concreto, acentuando a grande importância da aquisição de competências metodológicas e técnicas associadas à resolução de problemas espaciais (cartografia automática, sistemas de informação geográfica, modelação territorial…), sobretudo quando aplicadas numa perspetiva crítica. Com este conjunto de competências - conceituais, analíticas e metodológicas – os geógrafos apresentam condições de contribuir para a resolução de problemas macro, meso e micro que se colocam ao mundo atual e futuro, exercendo atividades profissionais diversas, do planeamento regional e urbano até à gestão e organização de transportes e mobilidades, do turismo à gestão das migrações, do ensino (a níveis diversos) aos cargos relacionados com o cuidado dos cidadãos, como a proteção civil.

5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
A pandemia da COVID19 que alterou significativamente a vida no mundo nos anos de 2020 e 2021 e cujos impactos diretos e indiretos continuarão a fazer-se sentir no futuro poderia ser uma escolha. E o fenómeno pandémico evidenciou a relevância das questões geográficas em múltiplas dimensões. Em termos teóricos, reforçou a relevância do espaço virtual enquanto organizador da vida quotidiana, mostrando que a realidade contemporânea e futura implica um real que se desdobra entre a materialidade e a virtualidade; este é o “novo” espaço objeto de estudo dos geógrafos. Ainda no domínio da teoria, as fortes restrições à mobilidade que têm sido impostas, não só relembram como esta é um direito essencial (assim como é essencial a nossa presença no espaço público, para nos podermos expressar e interagir socialmente…), como reabrem a discussão em torno do reforço da “inércia espacial” proporcionada pela (com)fusão entre espaço doméstico e espaço de trabalho e pela participação em reuniões e eventos virtualmente multi-situados, mas materialmente sem implicarem mobilidade. Neste domínio, vale a pena reler (criticamente…), Paul Virilio.
No quadro aplicado, valorizou a Geografia da Saúde e levou à retoma do estudo dos processos de difusão espacial das doenças. Mas permite também questionar os impactos nas opções de mobilidade das populações (maior uso do telemóvel individual; as limitações na utilização dos transportes coletivos), o possível reforço da vida dos bairros urbanos com implicações no comércio e nas deslocações de proximidade, e eventuais mudanças nas opções residenciais do futuro que a fuga às grandes densidades demográficas que facilitam o contágio epidemiológico e a expansão do teletrabalho parecem proporcionar.
Mas todos estes assuntos já vêm sendo debatidos de há uns meses para cá, pelo que a pandemia se torna um tema… demasiado recorrente. Desloco-me assim brevemente para outro, tão atual cuja discussão é apenas possível pelo meu atraso na resposta a esta oportunidade de entrevista que a APG proporcionou (é mesmo o único ponto positivo na demora, pela qual peço desculpas públicas): a retirada das forças ocidentais lideradas pelos EUA do Afeganistão, após uma guerra de 20 anos. 
Este acontecimento, de natureza eminentemente geopolítica e com um impacto simultaneamente global, nacional e regional, permite uma leitura geográfica crítica muitíssimo rica. Desde logo, a importância dos eventos geopolíticos tem sido uma das portas de entrada para a valorização contemporânea da Geografia. Depois, porque a posição geográfica do Afeganistão (tem fronteiras com a China, o Paquistão e o Irão e um conjunto de ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central com relações importantes com Moscovo, para além da Índia estar muito próxima) e certos aspetos relacionados com o acesso a recursos naturais (o gasoduto TAPI entre o Turquemenistão e a Índia; as possibilidades de exploração de cobre; a papoila do ópio…) tornam-no um espaço muito relevante no contexto regional, podendo contribuir para a estabilidade ou instabilidade dos vizinhos, consoante o tipo de poder que se instalar, os apoios que der e o fomento a tráficos, ações terroristas ou outras que pode proporcionar, diretamente ou por incapacidade para exercer os direitos de soberania. 
Ademais, o razoável fracasso de 20 anos de presença ocidental no Afeganistão, entre 2001 e 2021, que não conseguiu afirmar instituições democráticas, eliminar a força dos talibãs ou assegurar direitos plenos de cidadania, designadamente para as mulheres, radica numa perspetiva de intervenção em que os interesses ocidentais claramente se sobrepuseram aos interesses afegãos, conjugada com uma razoável ignorância da realidade do país e das dinâmicas da sua sociedade. E esta ignorância, também fomentada por uma visão mais de imposição de valores externos do que de incorporação e co-construção dos interesses, caraterísticas e aspirações locais, também tem uma dimensão geográfica. É que as representações étnico-culturais, frequentemente estereotipadas, dos afegãos e da sua sociedade, remetem para lógicas de identidade e controlo territorial, que estabelecem relações dinâmicas e se prolongam nos países vizinhos e numa diáspora forçada que, ao longo do século XX, se foi mantendo acima 2,5 milhões de pessoas. E se o étnico-cultural é relevante, o quadro político e geopolítico também, porventura até mais, como alerta Boaventura Sousa Santos em texto recente. 
Finalmente, as imagens a que assistimos do drama humano que corresponde à evacuação de milhares de pessoas a partir do aeroporto de Cabul em poucos dias (a que se juntam muitos mais a tentar sair pelas fronteiras terrestres com o Paquistão e o Irão, países que concentram o maior número de refugiados afegãos) mostram um processo de mobilidade geográfica, caraterizado pela migração forçada em massa que coloca inúmeros desafios e que a geografia pode ajudar a compreender.

6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê? 
É uma boa questão final que permite regressar ao espaço urbano (com o qual as respostas tiveram início) e, também, às minhas próprias origens, no bairro dos Olivais, em Lisboa. Não circunscreveria a recomendação apenas ao bairro, mas antes à Zona Oriental de Lisboa e suas margens (Marvila, Olivais, Parque das Nações), dado o didatismo que permite e as leituras conjugadas que proporciona.
Podemos começar pelos elementos físicos da paisagem, falando do relevo irregular de Chelas que tornou menos interessante a expansão urbana precoce e continuada, para leste do centro de Lisboa. Podemos continuar pelo Tejo e pelo Trancão que asseguram o recurso água, a riqueza dos solos, a hipótese da pesca e a facilitação das comunicações, algo abordado e desenvolvido num artigo notável de Jorge Gaspar (Os Portos Fluviais do Tejo, publicado na Finisterra em 1970), seguramente com lugar cativo na seleção dos melhores textos da Geografia Portuguesa (fiquemo-nos pelos artigos e capítulos de livro), mesmo que hoje fosse candidato a rejeição nas revistas de eleição da ciência competitiva, quanto mais não fosse pelo seu número de páginas… 
Permite também a leitura didática do processo de transformação dos espaços, considerando paisagens, atividades e pessoas, desde os conventos e da ocupação rural de outrora, com as casas senhoriais das quintas e os pequenos núcleos de povoamento fora de portas. Afinal, o palácio do Contador-Mor onde está instalada a Bedeteca de Lisboa, espaço dedicado à banda desenhada que já teve maior protagonismo na programação municipal da cidade, terá inspirado Eça de Queirós na criação da “Toca” de Os Maias, local dos encontros amorosos de Carlos e Maria Eduarda, que dali viam as luzes do lugar hoje designado como Olivais Velho, que passou de aldeia de cariz rural a espaço de indústria com a instalação em 1874 da Fábrica de Estamparia Alves Gouveia, que foi acompanhada da construção de casas para os operários. De resto, a presença da indústria, que tirava partido do porto fluvial e da linha de caminho-de-ferro, vai então passar a marcar a paisagem da Zona Oriental da cidade, conhecendo diversas fases de evolução, até ao declínio a partir do decénio de 1980.
Mas após a construção do bairro das casas económicas da Encarnação, com as suas pequenas vivendas com logradouro e do vizinho bairro de Moscavide, mais denso com edifícios de 3 ou 4 pisos, o processo de “suburbanização interna” da cidade vai chegar aos Olivais no final dos anos de 1950, por via de um plano de urbanização de cunho modernista, inovador para a época. Com ele chegam conceitos urbanos então novos, como o abandono do alinhamento das fachadas dos edifícios ao longo das ruas, a criação de vias específicas para peões, a concentração das atividades comerciais em núcleos e, sobretudo, a implementação de um princípio de mix residencial, com a construção de habitação pública e privada para vários grupos sociais. Para além do elemento físico e de um esforço para proporcionar coexistência social, mais do que mistura ou interação, o Estado Novo não se esquecia de associar componentes simbólicas ao espaço produzido, no caso dos Olivais Sul através da toponímia evocativa das cidades coloniais - Luanda, Benguela, Nova Lisboa (Huambo), Lourenço Marques (Maputo), Beira, Praia, Bissau…) e nos Olivais Norte com inscrição de nomes de militares das forças portuguesas mortos nas diversas frentes da Guerra Colonial. Se a história, mesmo nos seus aspetos negativos como o colonialismo ou a Guerra Colonial, não se pode apagar, a evocação da memória, tão importante para os coletivos, pode e deve ser reconstruída no sentido de trazer mais justiça, reconhecimento, reparação. Neste caso, a proposta não deve ser apagar designações de cidades lusófonas ou nomes de ex-combatentes, que porventura nem acreditavam na guerra em que participavam, mas conjugar a toponímia atualmente existente com os nomes modificados dos espaços urbanos dos PALOP (quando assim acontece) e de combatentes dos movimentos de libertação africanos que também perderam a vida. E tudo isto podia ser didatizado, conduzindo à necessária reconstrução da mensagem, ao reencontro positivo e à justa reparação histórica.
Os anos de 1990, já em plena democracia, dão início a uma grande regeneração urbanística com a construção do Parque das Nações, que vai juntar habitação de standing elevado com comércio e serviços. Próximo mantêm-se bairros sociais de épocas diversas – nos Olivais, em Chelas e na própria freguesia do Parque das Nações onde se localiza a Quinta das Laranjeiras. Uma paisagem de contrastes, portanto, nos edifícios residenciais que são indissociáveis da ocupação social, no desenho das cartas urbanísticas, no tipo de espaços dedicados às atividades económicas, com memórias do passado, restos de vazios urbanos e novas estruturas. Afinal a gentrificação que a Expo98, transformada em Parque das Nações, iniciou, intensificou-se no último decénio, com o afluxo de capital estrangeiro ao setor do imobiliário lisboeta, que vem promovendo a renovação e a reabilitação urbana orientada para o alojamento local e os segmentos de mercado socialmente elevados, ocupando vazios e abandonados e, não poucas vezes, expulsando os que ainda pretendem manter-se, incapazes de acompanharem a valorização e o aumento das rendas. O comércio popular vai-se gourmetizando e as memórias territorialmente inscritas das reivindicações dos operários industriais vão dando lugar a elementos alternativos, como a Fábrica de Braço de Prata, e a lutas urbanas que atestam focos de resistência dos moradores (na rua do Açúcar, por exemplo…).